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Redução da lista de imóveis protegidos do bairro Petrópolis preocupa moradores

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Redução da lista de imóveis protegidos do bairro Petrópolis preocupa moradores

Número de imóveis inventariados é 44,2% menor do que cadastro anterior, realizado pela própria Prefeitura de Porto Alegre

Quem anda pelas ruas do Petrópolis percebe, a despeito da verticalização da região nas décadas mais recentes, que o bairro ainda possui um conjunto significativo de casas históricas. Hoje são 203 imóveis “inventariados”, isto é, que têm protegidas suas características externas. Mas o número de construções listadas pelo patrimônio da cidade poderia ser maior: uma lista anterior, elaborada pela própria Prefeitura, contemplava 364 construções.

Essa classificação é objeto de disputa há mais de dez anos, e envolve a população do Petrópolis – tanto que foram fundadas, nesse período, duas associações de moradores: a Proteja Petrópolis, que defende a preservação dos imóveis, e a Associação de Moradores do Bairro Petrópolis Atingidos pelo Inventariamento da Prefeitura (Amai), que questiona os critérios utilizados para a proteção das casas.

O procedimento do Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis do Bairro Petrópolis começa em 2012, por iniciativa da Prefeitura, e é concluído somente em novembro de 2022, com um número de casas 44,2% menor do que as listadas em 2016 pela Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural – EPAHC, subordinada à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa.

A conclusão dos trabalhos ocorreu somente a partir de intervenção do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP/RS), que viu omissão do Executivo municipal no procedimento. Uma ação civil pública foi ajuizada pela Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre em 2019 e, apesar de uma tentativa de reversão com recurso do município, o Tribunal de Justiça determinou a finalização do inventário.

Herança dos anos 1930

A ocupação do que hoje é o bairro Petrópolis começa há cerca de cem anos, com a instalação de chácaras ao redor do Caminho do Meio – atualmente a Avenida Protásio Alves –, uma das vias de ligação da Capital à cidade de Viamão. O povoamento ganha vigor com a instalação, em 1937, de uma linha de bondes da Carris. São majoritariamente dessa época as residências inventariadas, nos estilos art déco, colonial espanhol, californiano, e, mais recentes, casas modernistas construídas a partir da década de 50.

O conjunto de 203 imóveis inventariados está no miolo do bairro, ao sul da Protásio Alves, com a maioria das unidades nas proximidades da Praça Mafalda Veríssimo. Somente casas constam na listagem, sem prédios de apartamentos. Há prioridade para inventário de imóveis quando estão em conjuntos, um ao lado do outro, ou quando ocupam esquinas, pelo destaque paisagístico.

A sucessiva substituição do perfil imobiliário do Petrópolis é preocupação da médica Janete Viccari Barbosa – cuja família vive no bairro desde 1941. “Há muitos apartamentos para vender, constrói-se sem parar, mas, quem caminha à noite não vê muitas luzes acesas. São construções para investimento, não para morar”, diz a moradora, que integra o coletivo Proteja Petrópolis. “Por que, afinal, as construtoras nunca desistem de erguer prédios altos no Petrópolis, que ficam anos e anos à venda?”, questiona.

“Uma casa que estava na lista do inventário foi há alguns dias demolida. Imediatamente fizemos contato com a Equipe do Patrimônio Histórico da Secretaria da Cultura, e acabamos recebendo a informação de que ela não constava mais na lista, pois tinha uma licença de demolição anterior. Mas como assim?”, indaga.

O advogado Álvaro Jôffre também integra a associação Proteja Petrópolis e relata que o tema dividiu o bairro: “O inventário foi muito polêmico, insuflou pesados esforços da construção civil e da bancada da Câmara de Vereadores vinculada a esse setor, no intento de barrar o processo de preservação”.

Uma parte relevante desses imóveis cumpre hoje o papel de abrigar estabelecimentos comerciais ou de serviços, em um bairro predominantemente residencial, ocupado por prédios de apartamentos – o que não é proibido, de acordo com as leis municipais de preservação. Em toda a cidade, são cerca de 5,2 mil imóveis inventariados como patrimônio cultural, a maioria no Centro Histórico.

Nova lei mais permissiva

Em 2019, durante a gestão de Nelson Marchezan Jr. (PSDB), o Executivo enviou à Câmara um projeto de lei para propor mudanças nos critérios de preservação. O texto foi aprovado com 25 votos favoráveis e nenhum contrário, em maio daquele ano. Assim, passou a ser permitido que proprietários de imóveis inventariados realizem transferência de potencial construtivo – isto é, que vendam o direito de construir, como se o bem não estivesse protegido.

A legislação, porém, é criticada por setores ligados à preservação arquitetônica. “Essa nova lei é absurda. Alterou a possibilidade de uso de materiais, por exemplo, que modificam o estado do imóvel histórico. Partes das construções, agora, podem ser demolidas. O que resta da proteção é muito pouco”, diz a advogada Jacqueline Custódio, especialista em Patrimônio e integrante do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc). Ela diz também que a equipe da Prefeitura destinada a tal tarefa é muito reduzida para analisar toda a demanda. “Fizeram que uma lei absolutamente a favor do proprietário que não quer preservar”, afirma.

“Quem contribuiu para que Sebastião Melo se tornasse prefeito foi o setor da construção civil. O patrimônio é visto como um problema – isso não é dito, mas é o que se percebe. Em Porto Alegre, a questão da preservação – e pode até não ser um problema exclusivo daqui – é posta de lado”, argumenta. Marchezan arrecadou R$ 2.942.855,17 na campanha eleitoral de 2016, ano em que foi eleito prefeito – boa parte desse valor doado também por setores ligados à construção civil. 

Os efeitos da preservação dessas casas tampouco representam um consenso para especialistas em urbanismo. “Se essas casas devem continuar sendo casas, ou seja, com baixo aproveitamento do solo, em uma área bem localizada da cidade, isso tem consequências. Ao deixar de desenvolver um local que dispõe de infraestrutura, serviços, qual região, nas proximidades, absorverá isso?”, indaga o arquiteto e urbanista Anthony Ling, editor-chefe do site Caos Planejado, publicação focada em cidades.

As novas construções no Petrópolis, nas décadas mais recentes, em geral são prédios de apartamentos destinados a um público de alta renda – a média de remuneração, na região, é o dobro da verificada na totalidade do município. Em geral não possuem atividades no térreo, característica das “fachadas ativas”, nome dado por urbanistas a espaços que estimulam a convivência na calçada.

“Existem nuances sobre o desenvolvimento urbano de Porto Alegre. Essas características são incentivadas pelo Plano Diretor vigente na cidade: recuar os prédios da calçada, não colocar qualquer atividade no térreo – e portanto usar grades e muros para segurança. A própria legislação estimula isso, o que não é bom. E nem é algo limitado ao bairro Petrópolis”, argumenta Ling. 

A consultoria Ernst & Young, que assessora a Prefeitura no processo de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, cita em seu relatório o desincentivo às fachadas ativas da cidade como ponto a ser alterado na construção do novo regramento urbano: “O efeito que essa medida causa é justamente a redução da caminhabilidade da cidade. Além disso, edificações que desejam alterar seus espaços térreos para fins comerciais também são dificultadas pela legislação vigente”, aponta. 

O documento, disponível no site da revisão do Plano Diretor, faz uma ampla defesa desta adoção: “A implantação da fachada ativa proporciona benefícios urbanísticos não apenas para a rua do imóvel, mas para toda comunidade à sua volta, por meio de impulsos que dinamizam o comércio e serviços locais, além da mobilidade e da acessibilidade que ocorrem de forma consequente ao uso misto. Com isso, traz consigo também a revitalização de áreas subutilizadas”. O Plano deverá ser votado apenas em 2024, com quatro anos de atraso ao prazo estabelecido no Estatuto das Cidades, de dez anos.  

Para Jacqueline Custódio, porém, a manutenção dos imóveis históricos não representa um entrave ao aproveitamento da infraestrutura instalada do bairro por um maior número de pessoas. “É preciso lembrar que uma coisa é o adensamento, outra, distinta, é a verticalização – essas características podem até não andar juntas”, afirma.

“Muitas vezes liberam construções onde já há infraestrutura, mas a construção demanda uma infraestrutura muito maior do que a instalada. O uso que se faz de um bem histórico protegido pode ser dos mais amplos”, finaliza.

A reportagem do Matinal buscou contato com a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural, tanto diretamente quanto pela assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa, para questionar por que a lista final de imóveis inventariados no bairro Petrópolis foi reduzida de 364 para 203 casas, e também sobre a situação atual na cidade, mais amplamente, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto.

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