Reportagem

Símbolo do descaso com o meio ambiente, abandono de viveiro levou Prefeitura à Justiça

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Símbolo do descaso com o meio ambiente, abandono de viveiro levou Prefeitura à Justiça Estufa está com a cobertura de sombrite comprometida desde 2017 (crédito: Equipe do Mandato da Vereadora Karen Santos (PSOL))

Ex-secretário do meio ambiente da Capital teve R$ 100 mil em bens bloqueados. Gestão de Marchezan promete recuperar espaço após pressão de ambientalistas, que denunciam a morte de  35 mil plantas 

A espécie de árvore Apuleia leocarpa, popularmente conhecida como grápia ou garapeira, chegou ao sul vinda da Amazônia após trilhar um caminho tortuoso por rios e bacias ao longo de milhares de anos. A gigante de até 30 metros de altura se adaptou à vegetação porto-alegrense como se fosse nativa após sua chegada no Guaíba por meio dos efluentes Uruguai e Jacuí. Mas sua madeira nobre a tornou alvo de madeireiros. Hoje, restam 50 grápias catalogadas em Porto Alegre. Duas podem ser vistas na Avenida Guaíba, na orla. As outras 48 fazem parte do viveiro municipal, que vive um abandono inédito em mais de 60 anos de existência e tornou o governo Marchezan réu numa ação civil por improbidade. 

Depois de um esforço coletivo de ONGs, ambientalistas e do Ministério Público, a prefeitura promete recuperar o local até o fim do mandato. A pauta ambiental deve voltar à cena dos debates eleitorais após a política levada a cabo por Marchezan terceirizar serviços e reduzir o papel da tradicional Secretaria do Meio Ambiente de Porto Alegre, a primeira pasta destinada à área criada no país, em 1976. O prefeito tucano voltou o foco da Secretaria para desburocratizar licenças ambientais, a exemplo da agenda do ministro Ricardo Salles, que se tornou alvo de críticas e sanções internacionais ao enfraquecer os mecanismos de controle e conservação da Amazônia. Um estudo do Parlamento Europeu, divulgado ontem, sugeriu denunciar Brasil em Haia pela falta de proteção da região amazônica.

Desde o início da sua gestão, segundo nota técnica do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), mais de 35 mil mudas morreram no viveiro – entre elas plantas raras e em risco de extinção – e estimam-se prejuízos de R$ 300 mil em danos ao patrimônio, devido à perda de equipamentos que, por falta de manutenção e segurança, foram furtados ou danificados nos últimos três anos.

Orquídeas raras trazidas do antigo orquidário municipal, demolido por Marchezan em 2018, estão expostas ao clima na estufa danificada. Créditos: Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá).

“Essa administração não tinha interesse em manter serviços públicos na área ambiental porque, para eles, tem que ser tudo terceirizado. O viveiro é um espaço público de produção de mudas, então houve interesse em desativá-lo”, descreve Paulo Brack, presidente do InGá, uma das entidades que participou da ação contra a prefeitura. “Agora se comprometeu a retomá-lo, até porque tem ações na Justiça contra o ex-secretário e o município”. O plano da prefeitura era comprar mudas apenas de viveiros particulares, porque seria “menos oneroso aos cofres públicos”, conforme o município declarou à época – em 2016, os custos com a manutenção do viveiro municipal giravam em torno de R$ 30 mil ao ano, menos de 0,03% do orçamento total da pasta, que atingiu o valor inicial de R$ 113 milhões em 2020. 

Em fevereiro de 2019, uma ação civil pública movida por quatro entidades ambientalistas (InGá, Agapan, União pela Vida e Associação Sócio Ambientalista) em conjunto com o Ministério Público acusou o então secretário do meio ambiente, Maurício Fernandes, e a prefeitura de improbidade e danos ao patrimônio público. Após um ano e meio de disputas jurídicas, em junho deste ano a Justiça concedeu uma liminar para bloquear R$ 100 mil em bens do ex-secretário – Fernandes saiu em junho do ano passado, após dizer que “não havia benefícios” na manutenção do viveiro. Após o bloqueio, o atual secretário, Germano Bremm, decidiu priorizar uma solução para o descaso, que só agora, um ano e meio depois da ação ser ajuizada, deve sair do papel.

“Pedimos em julho deste ano, mais uma vez, soluções imediatas do município, sob pena de multa diária, mas quem decide se vai aplicar isso é o juiz. Entendemos que o local continua precarizado e isso reforça a responsabilidade da prefeitura. Nós podemos pressionar, mas com a pandemia o judiciário está demorado”, explica Annelise Steigleder, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre. Em junho, o MP propôs multa diária de R$ 10 mil à prefeitura.

Devido à falta de manutenção, ervas daninhas invadem vasos de plantas em extinção (crédito: Equipe do Mandato da Vereadora Karen Santos (PSOL))

Segundo a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAMS), a pasta emitiu nesta quarta, 2 de setembro, a ordem de serviço para o início de reformas pendentes desde 2017, com previsão de término em até dois meses. Enquanto isso, um grupo de trabalho composto por servidores e técnicos da pasta está desenvolvendo projetos que possam ser iniciados após o período eleitoral, afirma a secretaria. 

Descaso de longa data

No início de 2019, Paulo Brack, que também é professor do departamento de Botânica da UFRGS, visitou o viveiro municipal e se deparou com um cenário de abandono. “Tive vontade de chorar. Espécies raras, orquídeas, milhares de mudas, algumas que não existem em nenhum outro viveiro fora o de Porto Alegre, morrendo, com capim crescendo nos vasos”, relembra. 

Localizado na Rua Victorino Luiz de Fraga, no bairro Lomba do Pinheiro, dentro do parque natural Saint’ Hilaire, o viveiro municipal acumula prejuízos desde o início da gestão Marchezan, com estufas e tubulações comprometidas e sem funcionários suficientes para a rega e manutenção de mudas, orquídeas e flora nativa. O espaço está sem luz e telefone desde 2017, após a queda de um poste, sendo que o cuidado das plantas depende da rede elétrica, e a escassez de funcionários dificulta mais a situação. Em resposta ao Matinal enviada nesta quarta (2), a prefeitura prometeu restabelecer a energia até novembro deste ano – mais de três anos de atraso. Ainda assim, apesar da ausência de luz desde 2017, a prefeitura gastou R$ 54 mil com energia elétrica no viveiro em 2018, segundo dados obtidos pelo Matinal via Lei de Acesso à Informação. Perguntada, a SMAMS não explicou o porquê do alto gasto com um recurso então indisponível.

Estrutura dos escritórios do viveiro municipal estão abandonadas desde 2018 (crédito: Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais)

O abandono também trouxe prejuízo em termos financeiros devido a equipamentos furtados ou danificados. Em 2011, segundo Brack, o viveiro obteve recursos federais do Fundo Nacional do Meio Ambiente para comprar câmaras frias e criar um banco de sementes. “Com a falta de luz e ausência de funcionários, os recursos comprados e a estrutura dos escritórios, ar-condicionado, acervos históricos, se tornaram alvo de vandalismo e roubos”, lamenta. Segundo dados da própria prefeitura de outubro de 2019, das 95 espécies atualmente preservadas no viveiro, cinco correm risco de extinção e mais de 400 estão sob ameaça de desaparecer da flora gaúcha. No total, restariam apenas 12 mil plantas no local, das cerca de 30 mil que existiam por lá até antes da gestão Marchezan. Em sua defesa na ação civil, a tese da prefeitura para justificar o abandono é que comprar mudas para a arborização urbana de viveiros particulares seria mais barato que manter o viveiro público, mas não apresentou estudos comprovando a economia com a opção. “Eles dizem ter a discricionariedade administrativa [liberdade, dentro dos limites da lei, que o administrador público tem para tomar decisões] para desmontar o viveiro. Não reconhecem o valor ambiental do espaço e pensam que podem tomar essa decisão”, diz a promotora. Brack recorda que o ex-titular Maurício Fernandes rotulou as ONGs e grupos ambientalistas “como grupos ideológicos movidos por interesses políticos”. 

A situação do viveiro não mudou mesmo após a ação. O foco da SMAMS se manteve na agilização de licenças ambientais, principal pauta do governo municipal na área – tanto Fernandes como Bremm são advogados com especialidade no licenciamento ambiental para empreendimentos. Em junho, a prefeitura comemorava ter superado a média de documentos ambientais emitidos em plena pandemia, na comparação com o primeiro trimestre do ano. Na mesma data, o MP chegou a cogitar uma eventual responsabilização de Bremm por omissão no caso do viveiro. “Como o atual secretário não é parte da ação, pedimos a intimação pessoal dele, dado que dentro dos processos judiciais é preciso caracterizar o dolo ou vontade deliberada de se omitir. Então, se uma vez intimado a agir, ele descumprir o prazo, pode haver a responsabilização”, explica Steigleder.

Mudas de sobraji, espécie ameaçada de extinção, com tamanho compatível para uso em plantios urbanos estão em recipientes potencialmente comprometidos (crédito: Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais)

Não é a primeira vez que o governo Marchezan se torna alvo de críticas na área ambiental. Com a promessa de melhorar os gastos da máquina pública e desburocratizar processos, a prefeitura terceirizou o serviço de podas de árvores urbanas, que passou a ser feito por empresas sem capacitação e fiscalizado pela secretaria de serviços urbanos, conforme reportagem do Matinal. Em agosto, ambientalistas protestaram contra a remoção da bióloga Maria Carmen Bastos da diretoria das unidades de conservação (UCs) Reserva Biológica do Lami e Refúgio da Vida Silvestre São Pedro, feita sem explicação ou consulta aos conselhos. Ativa nas denúncias contra grilagem e desmatamento nas UCs, entidades ambientais encararam a transferência como um “silenciamento” de uma servidora com papel ativo na conservação ambiental. A decisão de afastar Bastos foi revista após a pressão de entidades e moradores.

Um ano sem respostas

Em maio deste ano, ambientalistas visitaram novamente o viveiro e atestaram as mesmas condições constatadas em janeiro de 2019. Fizeram novos pedidos à Justiça e à SMAMS. “Ficamos muito apreensivos. Não fizeram nada até praticamente julho, quando começaram a se mexer. Nesse tempo, mais plantas morreram”, lamenta Brack. A primeira resposta da prefeitura só veio em junho, quando foi criado um grupo técnico “para repensar o viveiro e garantir sua funcionalidade”. 

Setor do viveiro de plantas de interior, também danificado (crédito: Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais)

Semanas depois, porém, a situação perdurava. Em 15 de julho, a vereadora Karen Santos (PSOL) voltou ao local e, em seguida, protocolou pedidos de providência pelo restabelecimento da segurança e da luz elétrica, manutenção da sombrite e cobertura da estufa que armazenam mudas e orquídeas, substituição do sistema hidráulico e restabelecimento da estrada de acesso ao viveiro, tomada por buracos, o que torna o trajeto inacessível para automóveis. “Percebo que pela quantidade de problemas acumulados, além da Covid-19, a prefeitura está ignorando os pedidos de providência e informação de todos os partidos, não só da oposição. Para além do desmonte, está difícil organizar resistências por conta dessa escassez de respostas”, relatou a vereadora. Os pedidos de providência não foram respondidos.

Por meio da sua assessoria de imprensa, a prefeitura informou que alocou recursos para garantir a continuidade dos trabalhos no viveiro, com projetos aprovados para a manutenção da rede elétrica, da via esburacada, das estufas e de outras estruturas, como a sede administrativa. Além de resolver os problemas estruturais urgentes do viveiro, o plano é contratar uma empresa terceirizada para gerir e manter o espaço. 

Além disso, a SMAMS diz ter criado um grupo técnico para “estabelecer novas diretrizes para redefinir a finalidade do viveiro”. Apesar do histórico de abandono, informou que “o viveiro municipal é fundamental para a arborização da cidade, bem como instrumento de educação ambiental”.

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