Ensaio

13 de maio e 20 de novembro: diálogo entre dois símbolos de liberdade

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13 de maio e 20 de novembro: diálogo entre dois símbolos de liberdade Marc Ferrez, Partida para a colheita do café com carro de boi. Vale do Paraíba, RJ, 1885 | Acervo Coleção Gilberto Ferrez, Acervo IMS.

Anualmente, celebramos em 20 de novembro o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Tal data foi proposta por jovens negros universitários residentes em Porto Alegre no início da década de 1970. Eles se intitulavam Grupo Palmares e o seu integrante mais famoso foi o poeta Oliveira Silveira. Naqueles anos feitos de chumbo, a sociedade brasileira estava sob o regime de uma ditadura civil-militar, cuja leitura oficial acerca da história nacional baseava-se no mito da democracia racial. Nessa visão que metade dos militares de 64 aprendeu no livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e a outra metade herdou do Estado Novo, de Getúlio Vargas, as desigualdades sociais genuinamente nossas seriam apenas de classe, jamais raciais. Todos os brasileiros seriam mestiços e, por isso mesmo, não haveria preconceito de cor entre nós. Na contramão desse entendimento, o Grupo Palmares buscou produzir novas narrativas a respeito da história dos negros no Brasil, apontando a existência do racismo como um dos entraves históricos à distribuição de direitos civis, à escolarização e à ascensão social da população de cor.  As facetas mais conhecidas das ditaduras brasileiras – tais como vigilância, censura, perseguição, encarceramento e tortura – não eram os únicos modos de reprimir, ainda que fossem os mais radicais. Também foi repressora a negação do preconceito e da discriminação, bem como o hábito de acusar de racistas as pessoas que buscavam denunciar o racismo.

De fato, convém destacar a iniciativa daqueles jovens negros que se organizaram politicamente no Grupo Palmares desde antes da fundação do Movimento Negro Unificado, que só ocorreu em 1978. Contudo, a formação de coletivos negros com objetivo de exercer os direitos que o racismo negava não era uma novidade no Brasil. Não é difícil imaginar que os jovens negros porto-alegrenses fundadores do Grupo Palmares em 1971 eram filhos, netos e bisnetos de homens e mulheres que haviam criado, mantido e frequentado associações, clubes e salões de baile para pessoas de cor ao longo da primeira metade do século XX. Em Porto Alegre, a Sociedade Floresta Aurora, fundada por negros músicos, libertos, funcionava desde 1872. Duas décadas depois, em 1896, havia 37 agremiações para pessoas de cor na capital do Rio Grande do Sul. Nas primeiras décadas do século XX, várias daquelas agremiações continuavam em funcionamento ou deram origem a novas associações. Os jovens negros universitários que fundaram o Grupo Palmares no início da década de 1970 –  e que chegaram a fazer reuniões na Sociedade Floresta Aurora – eram herdeiros e renovadores de tradições políticas e organizativas preexistentes, transmitidas a eles pelos mais idosos e mais experientes por meio da aprendizagem e da socialização. Sempre há diálogos entre diferentes gerações, porque sempre há convivência entre elas.

Acontece que no calendário festivo anual daquelas agremiações que compunham o associativismo negro desde o final do século XIX (bem antes do surgimento do Grupo Palmares), as datas de 28 de setembro, referente à  Lei do Ventre Livre, e de 13 de maio, referente à Lei Áurea, estavam entre as mais importantes, a ponto de serem anualmente comemoradas. Não por acaso, 13 de maio e 28 de setembro davam nome a várias associações negras em diversas cidades brasileiras. Nessas datas, eram celebradas figuras importantes da monarquia: em menor medida, Dom Pedro II; com larga frequência, Visconde do Rio Branco (autor da Lei do Ventre Livre) e Princesa Isabel (assinante da Lei Áurea). Por quais razões isso ocorria?

Primeiro, porque a maior parte dos escravizados se tornou cidadão por meio de leis emancipacionistas promulgadas durante a vigência do regime político monárquico. No início da década de 1870, a cada 4 negros existentes no Brasil, 3 já eram livres e apenas um continuava escravizado. Segundo, porque a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel coincidiu com a campanha política promovida pela família imperial com finalidade de alcançar o terceiro reinado: havia um profundo investimento simbólico na construção da imagem da Princesa Isabel como uma autoridade católica, filantrópica e humanitária, expressão da ilusão conservadora, elitista e senhorial de que os libertos deveriam se sentir gratos pela concessão da liberdade. Terceiro, porque a própria existência de agremiações negras fora das irmandades católicas foi possível a partir da Lei do Ventre Livre. Por fim, no final do século XIX, as populações negras estavam politicamente divididas entre a monarquia e a república, razão pela qual as figuras de Isabel, Rio Branco e Dom Pedro II eram significativas para aquelas pessoas de cor que depositavam na monarquia suas esperanças de cidadania.

Palmares e Zumbi só foram mobilizados como símbolos de liberdade e como referências políticas pelas esquerdas e movimentos negros a partir de meados do século XX e, sobretudo, ao longo de sua segunda metade, especialmente durante a vigência da ditadura civil-militar instaurada em 1964. Desde o fim da escravidão, foram outros os símbolos associados à conquista da liberdade. A mudança proposta pelo Grupo Palmares no início da década de 1970, adotada pelo Movimento Negro brasileiro e que veio a se tornar a data que celebramos atualmente, caracterizou uma ruptura fundamental. A substituição do 13 de maio pelo 20 de novembro – data em que Zumbi, líder palmarino, foi assassinado – cumpriu funções políticas, históricas e simbólicas importantes: significou a troca da concepção de liberdade concedida pela de liberdade conquistada; o protagonismo das elites pelo protagonismo dos escravizados; a princesa branca pelo rei negro; Isabel por Zumbi.

Ao mesmo tempo, essa transformação simbólica não deve jogar no esquecimento e na invisibilidade as populações negras que agiram para obter o fim da escravidão no Brasil e, por tal razão, as diferentes datas associadas à conquista da liberdade (ainda que precária) são importantes para marcar os processos que conduziram ao fim do cativeiro. Claro, ficam dispensadas as figuras de Isabel, Rio Branco e Dom Pedro II,  a quem os escravizados e seus descendentes não deviam nada. Assim, o 13 de maio e o 20 de novembro podem ser interpretados não apenas como símbolos do protagonismo histórico dos filhos, netos e bisnetos de africanos em busca da emancipação, mas também como um ícone dos diálogos, das rupturas e das transmissões geracionais fundamentais para o surgimento do movimento negro organizado na década de 1970. A mudança não exclui a continuidade. Afinal, é certo que as associações negras atravessaram conjunturas bastante diversas, tais como os momentos finais do escravismo, a queda da monarquia, a proclamação da República, as agitações operárias do século XX, a lenta obtenção dos direitos trabalhistas. Ainda assim, os negros continuaram sentindo necessidade de fundar suas próprias agremiações. Sinal de que as outras formas de associativismo, especialmente o de classe,  e a conquista de diversos direitos  não deram conta de todas as demandas da população negra. Os movimentos negros continuam sendo tão necessários quanto as diferentes datas que balizam e conferem sentidos à sua longa história de lutas.


Marcus Vinicius de Freitas Rosa é doutor em história social pela UNICAMP e professor do Departamento de História da UFRGS. Orienta pesquisas no Programa de Pós-Graduação em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória). Desenvolve o projeto de pesquisa O privilégio da cor: administração pública, racialização e identidades brancas no Brasil escravista (1808-1850). É autor do livro Além da Invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-abolição.

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