Ensaio

A Alcione gaúcha: Juarez Soares de Lima

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A Alcione gaúcha: Juarez Soares de Lima Juarez Soares de Lima. Acervo de Carla Soares de Lima.

Juarez Soares de Lima (1944-1997) é rebento da capital gaúcha, filho do jaguarense Alceu Soares de Lima (1915-1980) e da santa-mariense Albertina Soares de Lima (1922-1997). A família era composta por Ana Maria de Lima Vargas (1943-1978), Luiz Fernando Soares de Lima (1945 -2012) e Carla Soares de Lima – a única ainda viva, cuja ajuda foi fundamental para recontar um pouco da trajetória de Juju, a Marrom dos pampas.

Em Porto Alegre, a família morou por anos na rua Nunes, no bairro Glória. Malas e cuias foram para Teresópolis algum tempo depois, para a rua Doutor Luiz da Silva Flores. O pai, Alceu Soares de Lima era pintor – não artístico. É um dos nomes relacionados entre os fundadores da Sociedade Beneficente Cultural Bambas da Orgia, em 1940, uma das forças das folias de Momo no Rio Grande do Sul. 

Os irmãos Soares, portanto, se criaram em meio ao samba. Em 1978, Luiz Fernando, conhecido como Meneca, fundou a Sociedade Recreativa Unidos do Umbu, que desfilava em tons de verde e branco. O nome da escola está relacionado a um velho umbuzeiro, que se ergueu em um terreno baldio na rua Cuiabá, bairro Medianeira, ao lado de onde residia o fundador. A graúda árvore acabou derrubada para a construção de um condomínio.

Reza a lenda que, em 1981, com o enredo A viagem fantástica ao reino das chuvas, enquanto cantava um trecho pedindo que os céus mandassem água sobre os baobás (“meu Deus do céu/ Mande água para os baobás”), Meneca, também intérprete, teve o desejo satisfeito. Os desfiles aconteciam na avenida Loureiro da Silva e a escola andou embaixo de uma chuva torrencial. Saírem como pintos molhados teria sido piada para, no ano seguinte, novo samba-enredo provocar os céus: “Choveu, choveu meu Senhor/Choveu, mas não me molhei”, dispararam. Novo toró caiu sobre os integrantes. Juarez deve ter participado dos trabalhos do irmão. Desenhando e desfilando. 

Conforme Carla, com quem estive em 27 de fevereiro de 2023, e com quem venho trocando figurinhas pelo Whatsapp, o irmão manifestava habilidades com o desenho desde criança. Já adulto, ele teria feito um curso, que não soube informar qual. Além de desenhar, no Bambas, Juarez consta como autor, junto com Carlos Eliseu Dias Mendes, do tema-enredo Quem conta um conto, aumenta um ponto, de 1992. Ou seja, eles criaram a inspiração para o samba-enredo. 

Apesar de crescer na escola fundada pelo pai, por alguma razão, Juarez acabou vinculado, de forma longeva, com uma das maiores concorrentes, a Imperadores do Samba, que surgiu, na Cidade Baixa, em 1959. Largamente pautado nos estudos de Sandra Maia, autora de Escolas de samba e tribos de carnaval de Porto Alegre, fiz a tabela abaixo, na qual é possível verificar algumas das agremiações por onde passou. 

Croquis também foram feitos para agremiações de Gravataí, para o Bambas da Orgia, antes de 1990, e para a Unidos do Umbu – conforme rememorações da irmã. 

A Marrom sul rio-grandense

Sustentar-se como figurinista, ainda mais pelo efêmero do carnaval, não era algo plausível. Desde 1971 até o óbito, Juarez foi funcionário da imobiliária de Francisco de Paula Medeiros de Albuquerque, estabelecimento no centro, na rua Marechal Floriano. 

Na pele de Alcione. Acervo de Carla Soares de Lima.

Durante esse tempo, morava não longe dali, em um prédio na rua dos Andradas. Esse edifício, aliás, ficou conhecido por Treme-Treme, famoso por ter a maioria de residentes homossexuais. Com frente para a Brigada Militar, era frequentado por Maythê, Djalma do Alegrete (sobre quem há um texto na Parêntese do dia 03/02/2024), Nega Lu (1950-2005), Sayonara, Serginho, Ayala, Michelle e outros LGBTQIAPN+ célebres na década de 1970. A existência desse conjunto de apartamentos com as fachadas para onde, hoje, está o Museu da Brigada Militar, também é um elemento que ampara para refutar a ideia de que, na Ditadura Civil-Militar, houve perseguições, sistemáticas e estatais, aos gays no Rio Grande do Sul  – já escrevi uma série de textos sobre o assunto, em uma série, para a Parêntese. A residência em frente aos milicos era considerada segura – o que não significa que a ditadura era algo bom, essa é uma via torta de inteligibilidade do que acontecia.

Outro visitante, assíduo do Treme-Treme, era Ronald Borges Fortes Rocco (1937-2016), renomado estilista carnavalesco, conhecido como Rony Rocco. Vizinho da família Soares, na rua Nunes, estendeu a amizade com Juarez (falta-me encontrar parentes de Rocco, em Porto Alegre, que possam recontar sua trajetória, informações serão bem-vindas). Sobre esse montante de gays, Carla mencionou que, na família, eles sempre foram “ensinados a respeitar a todos”. A sexualidade do irmão nunca foi comentada pelo pai, realidade comum a muitos nascidos no século passado. 

Juarez era um negro com o tom de pele parecido com o da cantora Alcione. Muitos recordam dele como transformista, exímio dublador da artista maranhense. Alguns comentam especificamente sobre uma apresentação na sede do Bambas da Orgia, que ficava, naquele tempo, no bairro Rio Branco, na rua João Guimarães. Miguel Teixeira, bambista vivaz, já com certa idade, apareceu para ver o espetáculo. Encantado com a voz, que julgara muito parecida com a de Alcione, teria manifestado entusiasmo e satisfação em ver alguém com tamanha habilidade vocal. Não se deu conta de que era dublagem – para a alegria contida dos demais presentes.

As tragédias familiares (elucidadas)

É preciso fazer um aparte para Everaldo Marques da Silva (1944-1974), jogador do Grêmio, considerado o primeiro atleta de um clube gaúcho a ganhar uma copa mundial. Em 1974, ele foi candidato a deputado estadual pela Arena. Ao voltar de um comício, da cidade de Cachoeira do Sul, sua terra natal, bateu o carro contra um caminhão. Faleceram ele, a esposa Cleci Silva da Silva, a filha Dayse Gisela Silva da Silva, com três anos de idade, e Romilda Marques da Silva, irmã de Everaldo. 

Muitas pessoas relataram que Everaldo era casado com uma irmã de Juarez, no caso a Ana, o que não confere. Ana faleceu dormindo. Acredita-se que essa confusão tenha surgido de falas do próprio Juarez. A esposa de Everaldo era, de fato, parente por parte do pai, mas não irmã. Conforme relatou Carla, Cleci foi criada por Albertina, já que ficara órfã, portanto era considerada como se fosse “irmã” deles, mas não era. 

Dona Albertina também merece seu espaço. Ela era uma mulher consciente sobre as questões raciais. Dizia que era importante que os filhos tivessem estudo.  A família sempre foi orgulhosa da negritude> “Nunca baixamos a cabeça para ninguém”, concluiu Carla. 

Desenho de Juarez (1997). Acervo de Jandiro Adriano Koch.

A Marrom descansa no Cemitério Ecumênico João XXIII,  próxima de onde ficava o frondoso umbuzeiro em torno do qual foi fundado a Unidos do Umbu. Faleceu em 28 de maio de 1997, aos 52 anos de idade, em decorrência da epidemia de Aids. O amparo, nas idas e vindas do Hospital Conceição, onde os casos eram acompanhados, veio da irmã Carla. 

Chamar a atenção sobre Alcione-Juju-Juarez, premiado por seu trabalho, cumpre com o papel de contar a história do carnaval, ao Sul, e de acompanhar as trajetórias negras e da população LGBTQIAPN+ no estado sulino, contextos que, apesar de algumas tensões, se cruzam lindamente.


Fontes: 
Maia, Sandra. Carnaval 2000; entrevista com Carla Soares de Lima; conversas com Luiz Augusto “Gugu” Lacerda e com Maythê, que foi amiga pessoal de Juarez.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

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