Ensaio

A aventura da Coolírica

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A aventura da Coolírica

O querido Fischer, memória viva e também cultor da memória, pediu um texto em que eu contasse a história da Coolírica. Vou contar aqui do meu ponto de vista. Digo isso porque a Coolírica foi obra de três poetas: Ricardo Silvestrin, João Angelo Salvadori e Ricardo Portugal. Então, adianto desde já que memória, como se sabe, é seletiva, apaga algum ou outro episódio, valoriza outros, sem falar que cada um dos três deve ter a sua própria versão da nossa aventura.

Eu conheci o João numa festa de aniversário do nosso colega Cláudio Ribeiro. João estava se transferindo do curso de História para a Letras, ambas faculdades na UFRGS. Eu e o Cláudio já cursávamos Letras na federal. Entrei em 1982. Em seguida, fui colega do João na cadeira Seminário de Criação Literária, ministrada pelas professoras Tânia Carvalhal, Maria da Glória Bordini e, mais tarde, também por Maria do Carmo Campos. Desde o primeiro contato com os poemas um do outro, eu e o João percebemos uma grande afinidade e admiração mútua. Cursamos creio que três semestres dessa cadeira. Eram nossos colegas poetas como Paulo Seben, Paulo Becker, Celso Gutfreind, e também prosadores como o próprio Cláudio Ribeiro e o contista, punk, cineasta Carlos Gerbase. 

Um pouco depois chegou, transferindo-se da Letras da PUC, o Ricardo Portugal. A primeira vez em que o vi foi no Centro de Estudantes de Letras, o CEL, que foi criado pela nossa geração. Portugal, com seu, na época, inseparável cigarro, já tinha na bolsa alguns poemas pra mostrar. Gostei muito do seu estilo polifônico, com alguns textos longos e uma pegada bem própria. Ele já conhecia o João dos tempos da militância no movimento estudantil, e logo ficamos um trio de amigos. Trocamos muitos poemas entre nós, sendo, a partir dali, um grupo de recepção crítica e de amadurecimento conjunto durante bons anos da nossa mocidade. 

Logo que cheguei à faculdade, recuando um pouco no tempo, fui convidado para participar de uma reunião na casa do professor Paulo Coimbra Guedes. A pauta era incentivar um grupo de jovens escritores a propor para a editora Mercado Aberto uma coleção de novelas, de relatos, enfim, uma produção contemporânea. Fischer também estava nessa, como um dos organizadores. Mostrei ao Guedes alguns dos meus poemas. Ele, como um grande professor de redação, leu e disse: “Não gosto dos teus poemas. Não dá pra mudar nada”. Era um irônico elogio de uma figura que, algum tempo depois, daria a barbada, como veremos, para a criação da Coolírica.

Escrevo poesia desde os quinze anos. Ia passando a limpo em cadernos e, a cada novo caderno, fazia uma peneira, deixando só o que me parecia bom. Essa mesma postura crítica amadureceu mais com as aulas no Seminário de Criação Literária e com o nosso grupo de poetas. De tal modo que, em dado momento, ali por 1984, eu reuni um conjunto de quarenta poemas que me pareciam ser publicáveis. Nesse mesmo período, fui assistir na Livraria Quimera, na Osvaldo Aranha, a uma apresentação de lançamento de um livro independente, que era como se chamavam os livros lançados sem uma editora, do Xico Zorzo. Gostei muito da proposta, textos curtos num livro feito pelo próprio poeta, todo em serigrafia. Fiquei amigo do Xico e mostrei meus poemas. Ele gostou e me propôs custear uma edição do meu livro. Depois, com a venda, eu juntaria a grana para retribuir seu empréstimo.

Concordei feliz da vida com a proposta e contei para o João e o Portugal. Eles se entusiasmaram e disseram que também dariam um jeito de custear cada um os seus próprios livros. Numa visita ao professor Paulo Guedes, relatei a ele nossos planos. Guedes sugeriu que, em vez de serem três livros isolados, poderíamos fazer uma cooperativa. Assim, com as vendas de cada um dos livros, daria para ir custeando a edição de outros novos poetas.

João e Portugal toparam a ideia. Precisávamos de um nome. Passamos alguns meses pensando em sugestões. Numa tarde, eu e o João fomos jogar futebol no parque Marinha e eis que, minutos antes de entrarmos na quadra de cimento, o João diz: “Coolírica!”. Contamos ao Portugal depois, que gostou também. Nascia a cooperativa. Lançamos em julho de 1985 dois livros: Viagem dos olhos, que era o meu, e Mapas e mudas, o do João. Em seguida, na primavera, saiu Antena tensa, do Portugal.

Algumas curiosidades e histórias divertidas que até hoje fazem a gente rir: eu e o João fizemos toda a operação gráfica dos nossos dois livros. Para isso, usamos os contatos que o João tinha no sindicato dos bancários – ele trabalhava no Banco do Brasil – para conseguir a composição. Sim, antes de fazer o fotolito, era preciso passar pela máquina que iria nos dar os textos digitados com as fontes que escolhemos. Também do João era o contato de um pai de um amigo do seu bairro, dono de uma gráfica que imprimiria as capas. Antes de chegarmos, João me preveniu que o cara iria chamá-lo de Paulinho, pois chamava assim a todos amigos de seu filho. O miolo, a montagem e a costura foram feitos na gráfica do CEUE, na Engenharia da UFRGS. Lá tinha um tal Teixeira, cujo nome virou gague entre nós, pois fomos várias vezes até conseguirmos falar com o sujeito. Sempre alguém nos dizia: “isso tem que ver com o Teixeira”. E o ápice foi a nossa peregrinação pela cidade para achar um bom orçamento na compra do papel. Quando estávamos para fechar o negócio, vejo o João despencar desmaiado ao meu lado.

Outro momento de que nos lembramos com alegria é o da escolha dos poemas do livro do João. Ele resolveu dividir o conjunto em duas partes que nomeavam o volume, “mapas” e “mudas”. Ficamos um bom tempo respondendo à questão se cada poema era de um ou de outro grupo. Mais uma gague: isso é mapa ou muda?

A criação gráfica de cada capa contou com a ajuda da troupe que nos circundava. O meu tem uma ilustração feita por mim, mas toda a finalização contou com a habilidade de uma namorada que fazia Artes Plásticas na UFRGS. João e Portugal pediram aos seus amigos desenhistas as artes para os deles. O livro do Portugal conta com uma seção final chamada carona, em que colocou dois poemas de outros poetas amigos. Tudo se deu com o espírito coletivo e a generosidade da juventude.

Era preciso divulgar. Fizemos um estêncil com a marca Coolírica e saímos na madrugada com um spray para pichar o nome da editora pela cidade. Já tínhamos conseguido o intento em várias paredes do centro, da Cidade Baixa e do Bom Fim, até que, já lá pelas cinco da manhã, estávamos numa esquina pichando e chegam uns brigadianos. Perguntam o que estávamos fazendo. Explicamos que era o nome de uma editora de poesia, uma cooperativa. A parede era de uma padaria que estava fechada. Lá de dentro vinha uma luz acesa. Os brigadianos bateram na cortina baixada. O padeiro, olhando por uma janelinha, perguntou o que eles queriam. Os guardas falaram que havia dois caras pichando a parede. O padeiro disse “deixa os guri”. Diante disso, os brigadianos nos mandaram embora.

Depois dos livros editados, tentamos levar adiante a ideia do Guedes. Chegamos a falar com alguns poetas para publicar novos volumes deles. Contudo, a venda dos nossos livros acabou custeando baurus e cervejas no Pedrini, um boteco na Cidade Baixa que foi também testemunha das nossas histórias. 

Poemas 

noturno

há coisas em mim

são bichos de luz

à noite reluzem

seduzem

em torno de algum sol de tomada

pela manhã não resta nada

além das asas mortas

.

(Ricardo Silvestrin. Viagem dos olhos. Porto Alegre: Coolírica, 1985, p. 11)


cumplicidade

ontem senti amor pelos viadutos

não bem isso

era mais complicado 

um compromisso 

firmado

.

(João Angelo Salvadori. Mapas & mudas. Porto Alegre: Coolírica, 1985, p. 9)


QUARTIER LATIN

para Jimmy Hendrix 

Berkeley blues bruma

púrpura mês de maio

morangos de maio 

reviram calçadas chamas

no céu de asfalto

Berkeley cordas crispadas

são sirenes, são carícias

à boca dos viadutos

são esquinas, são gargantas

encantadoras ruínas

sempre muito prazer

.

(Ricardo Portugal. Antena tensa. Porto Alegre: Coolírica, 1985, p. 38)


Ricardo Silvestrin é mestre em Letras pela UFRGS. Em 1985, publicou seu primeiro livro de poemas, “Viagem dos olhos”, pela editora Coolírica. Ganhou 5 vezes o Prêmio Açorianos de Literatura. Em 2021 lançou “Carta aberta ao Demônio” (Libretos).

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