Ensaio

A língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo – I

Change Size Text
A língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo – I Foto: Pexels/Pixabay

De fato, a língua portuguesa apresenta suas peculiaridades e dificuldades, seja para quem está aprendendo o português como uma língua adicional (pense nos estrangeiros que querem aprender português depois de certa idade), seja para quem quer dominar a chamada “norma culta” da língua – aquela que encontramos nas gramáticas de referência e nos livros didáticos escolares.

Acho essa discussão bem interessante. Por isso, vou escrever sobre ela em dois tempos. Hoje vamos falar sobre a língua portuguesa ser uma língua difícil se comparada a outras línguas do mundo. Na próxima coluna, falaremos sobre a dificuldade de dominar a norma culta do português. Me acompanhe (ou melhor: acompanhe-me!) nesse percurso.

Vamos começar comparando o português com o espanhol. Alguém pode dizer que o português é uma língua mais difícil que o espanhol, porque o português tem mais sons vocálicos do que o espanhol. Por exemplo, as vogais que são pronunciadas como é e ó não existem em espanhol. Tampouco existem os sons nasais que temos nas palavras irmão, irmã, mães, etc. que também não existem em espanhol. É por isso que um hispanohablante tem dificuldades para pronunciar as palavras pezinho e pãozinho como nós. De fato, o português parece mais complexo do que o espanhol no quesito inventário de sons

Podemos também comparar o português com o inglês. E qualquer aprendiz de inglês pode chegar à conclusão de que o português é muitíssimo mais complicado do que o inglês, porque a morfologia verbal do inglês é muito mais enxuta do que a nossa. Repare, por exemplo, como se conjuga o verbo amar em inglês e compare com o português:

IloveEu amo
YouloveTu/Vocêama
He/She/itlovesEleama
WeloveA genteama
Nósamamos
You loveVocêsamam
TheyloveElesamam

Em inglês, há apenas uma única modificação na flexão verbal: na terceira pessoa do singular (he/she/it), o verbo é marcado pelo morfema –s. Nas demais pessoas, o verbo segue a forma infinitiva (love). Trata-se, realmente, de uma morfologia verbal bem enxuta. Em português, por outro lado, o verbo amar é flexionado em amo, ama, amamos e amam (deixei de fora o tu amas e o vós amais, por não serem representativos do português contemporâneo). Ou seja, a conjugação verbal do português é mais complexa do que a do inglês. Isso fica ainda mais evidente quando conjugamos um verbo no passado:

IlovedEu amei
YoulovedTu/Vocêamou
He/She/itlovedEleamou
WelovedA genteamou
Nósamamos
You lovedVocêsamaram
TheylovedElesamaram

Aqui o português continua com as mesmas quatro flexões verbais de concordância (amei, amou, amamos e amaram), ao passo que o inglês apresenta uma única forma, loved

O fato é que uma língua pode ser mais simples do que outra em determinado aspecto, mas, ao mesmo tempo, ser mais complexa em outros. Por exemplo, o português é mais complexo do que o espanhol no quesito inventário de sons, mas o oposto é verdadeiro quando levamos em consideração a conjugação de verbos. Em espanhol, o verbo costuma apresentar um morfema de flexão diferente para cada pronome pessoal:

Yoamo
amas
Élama
Nosotrosamamos
Vosotrosamáis
Ellosaman

Obviamente, essa é uma simplificação que não comporta as variações regionais do espanhol, mas representa o espanhol culto falado, de qualquer maneira. Se o espanhol é mais simples no quesito inventário de vogais, é mais complexo no quesito conjugação verbal. Ou seja, não podemos concluir que o português seja uma língua mais difícil ou mais simples do que o espanhol.

Já na comparação com o inglês, encontramos algo semelhante. A conjugação verbal do inglês é realmente muitíssimo menos complicada do que a do português – e do que a do espanhol também, agora sabemos. Entretanto, o quadro de vogais do inglês conta com um número muito maior de sons do que o do português. Se, por um lado, o inglês é mais simples na conjugação verbal, ele é muito mais complexo no seu inventário fonológico de vogais: o inglês tem 15 vogais orais pronunciadas, ao passo que o português tem apenas 7 – tente pronunciar man (“homem”) e men (“homens”) em inglês, para ver como achamos difícil diferenciar essas duas palavras. 

Isso nos leva à conclusão de que não há uma língua que seja a língua mais difícil do mundo. Na verdade, não há sequer uma língua que possa ser considerada mais difícil do que outra. Todas são igualmente complexas – algumas podem ser mais simples do que o português em alguns quesitos (como o inglês é mais simples do que o português na conjugação verbal), mas são mais complexas em outros (como na quantidade de vogais). Além do mais, não há critérios claros e objetivos para caracterizar a simplicidade ou a complexidade de uma língua. 

Talvez a única língua que podemos afirmar, com alguma certeza, que é mais simples do que o português (e mais simples do que qualquer outra língua natural, na verdade) é uma língua que seja, justamente, não natural. Ou seja, uma língua artificial que tenha sido criada por algum linguista ou por um interessado em línguas, como o klingon (a língua criada para a série Jornada nas Estrelas), o dothraki (da série Game of Thrones) ou o esperanto, que é provavelmente a língua artificial que tem o maior número de falantes. O esperanto foi criada pelo médico e estudioso polonês Ludwig L. Zamenhof no final do século XIX, e é baseada em diversas línguas europeias. A pretensão do esperanto foi se tornar uma língua universal – não substituindo as línguas oficiais de cada país, mas sendo uma segunda língua universal, que pudesse ser utilizada e compreendida por todos. Por isso, suas regras gramaticais buscam simplicidade e lógica. Seu sistema de sons é, de certa maneira, facilitado para quem já fala alguma língua europeia, contando com 5 vogais e 23 consoantes. E seu sistema de conjugação verbal não tem nenhuma irregularidade. Por isso, podemos afirmar, com alguma segurança, que o esperanto é uma língua mais fácil do que uma língua natural qualquer (como o português, o espanhol ou o inglês). 

Ainda assim, cabe aqui uma ressalva: o esperanto foi criado tendo como base algumas línguas europeias e, por isso, pode ser considerada uma língua fácil para quem já domina uma língua europeia. Para um falante de chinês, árabe ou guarani, contudo, o esperanto pode apresentar dificuldades. Isso porque costumamos julgar o grau de dificuldade de uma língua também por comparação à nossa própria língua. Por exemplo, possivelmente diremos que o japonês deve ser uma língua mais difícil do que o espanhol ou o italiano. Mas isso só acontece porque o japonês não tem nenhum grau de parentesco com o português, e suas diferenças vão desde seu sistema fonológico até seu sistema de escrita, passando por sua morfologia e sintaxe. Nesse sentido, julgamos que uma língua seja complexa ou difícil em comparação com a nossa própria língua. 

Em resumo, creio que a moral da história aqui seja a seguinte: em se tratando de línguas naturais, não há como afirmar que uma língua seja mais complexa do que a outra, de forma generalizada. O ponto de vista é que vai decretar o grau de dificuldade da língua.


Gabriel de Ávila Othero é professor de Linguística do Instituto de Letras da UFRGS.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.