Ensaio

A literatura no carnaval pensando o Brasil

Change Size Text
A literatura no carnaval pensando o Brasil Desfile das campeãs, Portela. Foto: Alexandre Vidal/Rio Carnaval

O carnaval de 2024 retomou uma das tradições mais expressivas dos desfiles de escolas de samba, essa manifestação cultural que, muito mais do que um festejo popular, se converteu ao longo do último século em um dos nossos principais símbolos de brasilidade e consolidou um gênero artístico único. Essa tradição é falar de obras da literatura brasileira, presente desde os primeiros desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, nos anos 1930, e de grande destaque também neste 24. Chamou a atenção de quem acompanhou o noticiário carnavalesco a Portela tematizando o romance histórico Um Defeito de Cor (Record), de Ana Maria Gonçalves, e a Grande Rio abordando o ensaio historiográfico Meu destino é ser onça (Civilização Brasileira), de Alberto Mussa. 

Durante cerca de seis décadas perdurou nos desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro a obrigatoriedade de temas pátrios. Em vez de ser uma “imposição” do Estado Novo, como preconizava parte da bibliografia, foi o jeito encontrado pelas comunidades negras e periféricas, as protagonistas daquele novo tipo de expressão carnavalesca, se fazerem aceitas pelo poder público. Já no estatuto da União das Escolas de Samba do Rio, na década de 30, constava a “busca da brasilidade” como um dos objetivos almejados por aquelas recém-criadas agremiações. E poucos elementos de nossa cultura historicamente retrataram tão fortemente essa “busca da brasilidade” quanto a literatura brasileira. 

Entre enredos abordando as obras literárias em si, outros homenageando os escritores e outros, ainda, falando dos movimentos literários e artísticos, o que se viu foi a construção de uma longuíssima duração na poética cancional das escolas de samba do Rio de Janeiro (utilizo o conceito e aprofundo o tema em tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, em 2019, sob a orientação do Prof. Luís Augusto Fischer).

Para ficar em alguns exemplos: em 1948, o Império Serrano trouxe para a avenida o enredo Homenagem a Castro Alves, de caráter bastante laudatório. Nove anos depois, o Salgueiro tematizou o poema mais conhecido do autor, Navio Negreiro, naquele desfile considerado pioneiro ao falar da escravidão. Dizem os versos de Djalma Sabiá e Amado Régis: “Ô-ô-ô-ô-ô. / No navio negreiro / o negro veio pro cativeiro. / Finalmente uma lei / o tráfico aboliu, / vieram outras leis, / e a escravidão extinguiu, / a liberdade surgiu / como o poeta previu”.

Os anos 1960 foram pródigos na inspiração em obras da literatura brasileira e seus autores. Dois deles, contudo, merecem uma deferência especial por serem lembrados até hoje: Memórias de um sargento de milícias, da Portela em 1966, único samba-enredo composto por Paulinho da Viola, inspirado no clássico homônimo de Manuel Antônio de Almeida publicado originalmente em 1853; e O mundo encantado de Monteiro Lobato, da Mangueira em 1967. 

Da mesma forma, a década de 1970 apresentou mais de uma dezena de enredos inspirados na literatura brasileira. Citam-se três que entraram para o “panteão” do gênero: Martim Cererê, da Imperatriz Leopoldinense em 1972, cuja inspiração é o poema de Cassiano Ricardo de 1928, da vertente indianista e nacionalista do Modernismo; Macunaíma, herói de nossa gente, da Portela em 1975, baseado no livro de Mário de Andrade; e Os Sertões, da Em Cima da Hora em 1976, de transposição bastante livre da obra magna de Euclides da Cunha. Observa-se que, ao passo que o primeiro samba-enredo estava em consonância com a ideia do “Brasil grande” promovida pela ditadura militar – “Gigante pra frente a evoluir (laiá laiá) / Milhões de gigantes a construir (laiá laiá laiá)” –, o terceiro caminha pela via da melancolia e do lirismo para denunciar as desigualdades sociais e climáticas: “Marcado pela própria natureza / O Nordeste do meu Brasil / Oh! solitário sertão / De sofrimento e solidão / A terra é seca / Mal se pode cultivar / Morrem as plantas e foge o ar / A vida é triste nesse lugar”. 

Dos anos 1980, que também contaram com grande presença de enredos inspirados em histórias e autores da literatura brasileira, entre as representações mais interessantes estão dois enredos de 1987: No reino das palavras – Carlos Drummond de Andrade, sobre a obra do poeta, e Capitães de Asfalto, da São Clemente, que se inspira em Capitães de Areia de Jorge Amado para fazer uma crítica social pungente: “Enquanto o filho do papai rico / Desfruta do bom e o bonito / Do dinheiro que o pai tem / Lá vai o menino pobrezinho / Que acorda bem cedinho / Pra vender bala no trem / Muitas vezes é abandonado / Sendo bem ou maltratado / Na chamada Funabem”. 

Na década de 1990 a quantidade caiu, porém houve desfiles importantes – e campeões – acerca de autores, movimentos e obras da literatura e cultura brasileira: Pauliceia Desvairada – 70 anos de Modernismo, da Estácio de Sá (“Me dê, me dá, me dá, me dê / Onde você for eu vou com você”); e Chico Buarque da Mangueira (É o Chico das artes… O gênio / Poeta Buarque… Boêmio / A vida no palco, teatro, cinema / Malandro sambista, carioca da gema”).

Nos anos 2000 em diante, quando já não vigorava a obrigatoriedade de temas pátrios, a possibilidade de falar também de outras literaturas se abriu, possibilitando-se enredos falando de Hans Christian Andersen (Imperatriz, 2005), Cervantes (Mocidade, 2016) e das Mil e uma noites (Mocidade, 2017), entre outros.

Para quem não acompanha de perto o instigante universo das escolas de samba, cabe explicar que a feitura de um desfile tem como documento básico a sinopse do enredo, formulada muitos meses antes. Esse texto, geralmente em forma de prosa, é fruto de muita pesquisa dos profissionais chamados de carnavalescos e especialistas convidados. Para exemplificar, o enredo Nosso destino é ser onça, da Grande Rio, apesar do título remeter à obra quase homônima de Alberto Mussa, contou com a consulta a 27 livros, 5 artigos e 3 exposições. Entre as fontes consultadas, além do livro de Mussa, estavam obras de autores indígenas como Ailton Krenak e Graça Graúna, compilados de literatura oral de Câmara Cascudo, produções técnicas de autores brasileiros e estrangeiros e, ainda, outras obras da literatura brasileira, como o conto Meu tio, o iauaretê, de Guimarães Rosa. 

O enredo da Grande Rio mergulha nas cosmovisões indígenas brasileiras, em especial dos tupinambás, para tratar da criação (e recriação) do mundo e dos seres. A figura da onça encarna o “eterno devir”: é preciso comer o inimigo para sobreviver, mas também para tornar-se outro e assim seguir adiante. A partir da metáfora da onça, a escola quis falar de resistência física e cultural dos povos indígenas, da simbiose natureza e cultura oferecida por suas cosmovisões e, ainda, da antropofagia que devora o outro e cria o novo a partir do contato, trazendo à tona a “diferonça”. Diz a letra do samba: “Kiô, kiô, kiô, kiô, kiera / É cabocla, é mão-torta / Pé-de-boi que o chão recorta, travestida de pantera / Kiô, kiô, kiô, kiô, kiera / A folia em reverência / Onde a arte é resistência, sou Caxias, bicho-fera”.

O caso mais emblemático, contudo, foi o da Portela com Um defeito de cor. Logo após o desfile, notícias deram conta de que o livro havia se esgotado na Amazon e em outras lojas. Em um enredo que contou com a colaboração da própria autora Ana Maria Gonçalves, junto dos carnavalescos André Rodrigues e Antonio Gonzaga, a azul-e-branco promoveu interessantes adaptações à obra de mais de 900 páginas: no lugar da voz de Luísa Mahin/Kehinde, quem narra é seu filho Luiz Gama/Omotunde. Em forma de carta, no enredo Gama escreve à sua mãe: “Luiza, minha mãe: seu corpo é o meu corpo, sua luta é minha luta, seu sangue é meu sangue, seu verbo é o meu verbo, sua voz é a minha, sua pele é a minha, seu coração é o meu, seu amanhã é o meu, o seu chão é o meu chão”. No refrão do samba-enredo, o mesmo narrador homenageia: “Saravá Kehinde! Teu nome vive! Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher! Em cada um nós derrame seu axé!”. O desfile, por sua vez, destacou diversos fatos presentes na obra, como a origem no reino de Daomé, a travessia do Atlântico, a Salvador do início do século XIX, os rituais do sagrado feminino etc. Enfim, foi bastante fiel às representações do romance e foi além, trazendo uma estética carnavalesca peculiar e um discurso não-hegemônico nos estudos da cultura brasileira. Ao final, no carro alegórico “Em cada porto, nosso ninho”, a escola trouxe mães negras carregando cartazes com os nomes de seus filhos que partiram, vítimas de diferentes atos de violência – entre elas, dona Marinete Silva, mãe de Marielle Franco. 

Por fim, cabe destacar que não foi só no Rio de Janeiro que a literatura foi colocada em primeiro plano. Em São Paulo, a escola de samba campeã, Mocidade Alegre, recorreu à obra de Mário de Andrade para tratar de identidade brasileira e cultura popular no enredo Brasiléia Desvairada: a busca de Mário de Andrade por um país.

Manifestação cultural que anualmente se renova em temas, estéticas e canções, as escolas de samba seguem sendo expressão do que o Brasil faz de melhor. Conectadas a seu tempo, demonstram que a literatura brasileira segue pujante, atualizando-se e tendo muito a dizer. E, com a força que possuem para furar bolhas, os desfiles de escolas de samba ajudam a popularizar a arte da palavra e a derrubar barreiras criadas por cabeças elitistas. 


Jackson Raymundo é Doutor em Letras pela UFRGS e professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB. É autor da tese A construção de uma poética da brasilidade: a formação do samba-enredo (PPG Letras UFRGS, 2019) e do livro Samba-Enredo: a poética do carnaval de Porto Alegre (Atena Editora, 2021).

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.