A morte do cronista diário
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Em um dos seus últimos textos, o David Coimbra contou sobre uma mensagem que havia mandado para si mesmo alguns dias antes. Apenas três palavras: “cama como trono”. Uma ideia para uma crônica, com certeza, mas qual? Ele não lembrava. “As ideias são assim, ariscas como onças do Pantanal. Você tem uma que achou genial, começa a falar sobre outro assunto, se distrai um minuto e pronto. Cadê aquela ideia que agora mesmo estava aqui, brilhando? Foi se ocupar de uma lebre para o jantar.”
Qualquer um que escreve para pagar as contas sabe como dói deixar uma ideia escapar quando mais se precisa dela. Os que têm a obrigação de ter pelo menos sete ideias por semana, 11 meses por ano, são os que mais sofrem – em geral, não por muito tempo, porque jornal tem hora para fechar. Diante da onça escapulida, portanto, o David tratou de resolver o problema logo e do modo tradicional: transformou a fuga do assunto no próprio assunto do dia.
“Acho-me sinceramente vexado quando apareço de alforje vazio e mais vazia a alma”, lamentava Machado de Assis em uma crônica dos anos 1860. Um século depois, Rubem Braga parecia já completamente à vontade com o exercício cotidiano da improvisação temática: “A felicidade é uma suave falta de assunto”. Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Veríssimo, todos os mestres da crônica brasileira, sem exceção, escreveram sobre a falta de assunto. Nelson Rodrigues citava Eça de Queiroz como o inventor do “bei de Túnis” (o do Nelson era o Otto Lara Rezende), tábua de salvação dos cronistas em dia de bloqueio criativo: “Em Túnis há sempre um bei, e é doce descompor alguém com a prévia e linda certeza da impunidade”.
[Continua...]