Ensaio

“A muralha” e “Os invasores”: reimaginações do passado por Dinah Silveira de Queiroz

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“A muralha” e “Os invasores”: reimaginações do passado por Dinah Silveira de Queiroz Dinah Silveira de Queiroz em frente a quadro ilustrado com personagens de suas obras, Revista "A Cigarra", 1965

No ano 2000 o nome de Dinah Silveira de Queiroz voltou a ser assunto por um breve período. Isso aconteceu porque seu terceiro romance, A muralha, foi adaptado por Maria Adelaide Amaral para TV Globo como parte das comemorações dos 500 anos do “descobrimento do Brasil”. O grande sucesso da minissérie alavancou uma nova edição do livro, que figurou por várias semanas entre os mais vendidos em listas como a da revista Veja e a do jornal O Estado de São Paulo.

Abertura da minissérie “A muralha”/Memória Globo

O romance foi lançado originalmente em capítulos semanais entre 1953 e 1954 na revista O Cruzeiro, considerada até hoje uma das maiores que o país já teve. A publicação em livro ocorreu logo após a conclusão nas páginas do periódico, e teve sua primeira edição esgotada em menos de um mês. Antes do ano 2000, a obra já tinha ganhado adaptações para televisão em outras quatro ocasiões, e surgido ainda nos formatos de radionovela e história em quadrinhos. A popularidade da obra também colocou A muralha como o livro de Dinah de maior circulação internacional, tendo sido editado em países como Argentina, Bangladesh, Coreia do Sul, Estados Unidos, Japão, Paquistão e Portugal. 

A muralha tem como pano de fundo a Guerra dos Emboabas, ocorrida entre 1708 e 1709, motivada pela disputa da exploração do ouro em regiões atualmente pertencentes à Minas Gerais. O romance se desenvolve a partir da história de Cristina, portuguesa que vem ao Brasil para se casar com o primo Tiago, proveniente de uma família paulista de bandeirantes. Além de Cristina, se tem um número significativo de personagens femininas com relevância para a trama: Basília, Isabel, Joana Antônia, Margarida, Mãe Cândida, Rosália. Em todas elas, de variados modos e em variados graus, pode ser percebido os elementos da coragem e da subversão.

Em suas manifestações e depoimentos sobre A muralha, Dinah comunicou repetidamente a intenção de recuperar a atuação feminina em meio ao contexto e a acontecimentos históricos presentes no romance. Em uma crônica de sua autoria para o Jornal do Commercio (RJ), escreveu: “As mulheres paulistanas tiveram seu duro quinhão de heroísmo, no alastramento do Brasil. Essas matronas não celebrizadas em praças públicas foram as responsáveis de que se não perdesse uma vila, sacrificada pelas viagens de filhos varões”. Em uma entrevista para o jornal A noite (RJ), a escritora também declarou: “Ao imaginar A muralha, pretendi tirar do episódio famoso da rebelião das mulheres piratiningas, que incitaram seus maridos a voltar e a punir a ofensa do Capão da Traição, na Guerra dos Emboabas, a suma de uma mensagem sobre o papel da mulher no desenvolvimento do Brasil”. 

A referência a “Capão da Traição” diz respeito a um violento incidente no qual parte dos emboabas teria massacrado um grupo de paulistas após este ter aceitado a rendição. Já a rebelião das mulheres teria ocorrido quando os sobreviventes do massacre não foram bem recebidos por suas esposas, que exigiam que retornassem à batalha para vingar seus conterrâneos assassinados. Os dois ocorridos, em especial o que diz respeito à reação severa das paulistas, são motivos de controvérsia entre diferentes historiadores, ao ponto de alguns sequer reconhecê-los como reais. 

Apesar disso, Dinah, ao se referir à rebelião, atribui a ela a qualidade de “famosa”, mesmo essa não passando de uma breve – e duvidosa – nota na história. É possível considerar que o tratamento dado ao episódio se deva ao fato de ele oferecer a possibilidade de uma narrativa em que fosse ilustrada a importância do papel feminino naquele período histórico. Assim, nessa circunstância, o fato de se ter poucas informações sobre o ocorrido se torna um trunfo: em sua visão ortodoxa de que o ficcionista não deveria alterar fatos históricos, Dinah se apropriava, então, de episódios em que as mulheres tiveram protagonismo – ainda que tais episódios fossem um tanto obscuros – para, sem mudar o que registrava a história, recriar um passado para essas mulheres. Esse modus operandi já havia se manifestado em Margarida La Rocque, e pode igualmente ser percebido em Os invasores

Lançado pouco mais de 10 anos após A muralha, Os invasores também foi publicado primeiramente em capítulos semanais em O Cruzeiro, entre janeiro e maio de 1965. A repercussão deste romance, porém, foi bem menos expressiva: enquanto A muralha, por exemplo, é a obra de Dinah com o maior número de traduções, não consta que Os invasores tenha ganhado edições em outros idiomas. Apesar de sua circulação ter sido muito menos significativa, o livro foi bem recebido pela crítica, e chegou a servir de base para o samba enredo de 1969 da escola de samba carioca Unidos do Uraití.

Os invasores tem como pano de fundo a invasão francesa ao Rio de Janeiro de 1710, liderada pelo corsário Jean-François Duclerc. A obra tem seu início dias depois do desembarque dos franceses no Rio, e termina logo após o assassinato de Duclerc. A parte inicial se desenrola principalmente em torno de um grupo de mulheres que buscou guarida em um trapiche – espécie de armazém próximo à faixa costeira. Entre essas personagens, estão algumas das protagonistas do romance: Daniela, uma ingênua moça que aspirava à vida religiosa, Inês, cunhada do governador, e Luisita, suposta descendente de franceses que serve de intérprete entre os homens de Duclerc e os habitantes locais.

Alguns historiadores chegam a mencionar brevemente o fato de que 60 mulheres buscaram abrigo em um trapiche durante a invasão francesa, mas nada além disso é informado sobre o ocorrido. Dinah, assim, desenvolve parte significativa de seu romance baseada nessa breve passagem da história. Em Os invasores, ela não só apresenta quem eram as mulheres presentes no trapiche, como também narra os acontecimentos envolvendo esse grupo e quais foram suas ações durante e depois do embate, incluindo a possibilidade de ser uma dessas mulheres a responsável pela morte de Duclerc – um crime nunca esclarecido. Com isso, são preenchidas lacunas da história, e recriados passados possíveis em que a atuação das personagens femininas não é excluída das narrativas. No caso de Os invasores, o relevo do protagonismo das mulheres parece ter se sobressaído de tal maneira que o título do livro, em edições mais recentes, foi alterado para Daniela e os invasores, marcando seu papel de destaque nesta obra de Dinah Silveira de Queiroz, assim como na maior parte de sua literatura. 


Natural de Porto Alegre, é Doutora em Letras – Teoria da Literatura (PUCRS, 2023). Sua atuação como pesquisadora está voltada principalmente às áreas da literatura brasileira, teoria e crítica feministas e à obra da escritora Dinah Silveira de Queiroz. Atualmente é servidora pública da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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