Ensaio

A música clássica, a espoliação do Pau-brasil e a ideia de comércio justo

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A música clássica, a espoliação do Pau-brasil e a ideia de comércio justo

Há mais de 200 anos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos são tocados, no mundo todo, com arcos feitos de pau-brasil (ou madeira “pernambuco”, como normalmente é chamada no exterior). Por suas características peculiares – resiliência, densidade, etc. –, o pau-brasil é considerado o melhor material para a construção de arcos. Essa madeira sempre saiu, e continua saindo, exclusivamente do Brasil. Nosso país foi nomeado a partir da espoliação do pau-brasil, utilizado desde a vinda dos portugueses para fazer tintura vermelha para tecidos de luxo, como se sabe. Alguns séculos depois do período em que ocorreu a maior parte da devastação da espécie, a exploração ainda segue com o comércio que visa à fabricação de arcos, instrumentos musicais que friccionam e golpeiam cordas com alta precisão, em concertos no mundo todo.

Como violinista de profissão que sou, tenho algum conhecimento do campo por dentro. O ofício de arqueteiro é uma artesania artística por si só, uma especialização com mais de dois séculos de práticas e conhecimentos acumulados, desde que os parâmetros técnicos estabelecidos por François-Xavier Tourte no fim do século XVIII se consolidaram em Paris, a Meca dos arcos. As técnicas de confecção são altamente padronizadas mas compreendem uma grande variedade sonora entre um arco e outro, objetivando os melhores resultados acústicos e musicais possíveis dos instrumentos que tocam. Um excelente arco, novo, de um arqueteiro renomado, pode sair hoje por mais de 5 mil euros. Um arco feito por um grande arqueteiro do passado chega à casa das várias dezenas, ou até mais de uma centena, de milhares de dólares. O preço médio de um arco profissional bom, para os parâmetros da comunidade da música clássica, normalmente começa em alguns milhares de reais. E há também, é claro, arcos de qualidade e preço mais baixos, que geralmente também são feitos com pau-brasil – grande parte da madeira tem esse destino.



Há alguns dias foi desbaratada, no âmbito da “Operação Ibirapitanga II”, da Polícia Federal, uma rede de comércio ilegal que extraía pau-brasil de áreas protegidas, e especialmente do Parque Nacional do Pau-Brasil, em Porto Seguro, Bahia (ponto turístico, o parque foi concedido à iniciativa privada em 2018). Apreensões feitas em duas ocasiões, a partir de investigações iniciadas na “Operação Dó Ré Mi”, coletaram 235 toretes e mais de 74 mil varetas – para a comercialização, a madeira é cortada em varetas nas dimensões apropriadas para a confecção de arcos. O módico preço de cada vareta, segundo levantamento da PF: entre 20 e 40 reais.

Infiro que esse seria um preço no patamar mais baixo da pirâmide de atravessadores, que chega ao exterior, com o preço subindo a cada nova transação. Um destino identificado na mais recente interceptação era os EUA, e já houve apreensões em aeroportos de varetas e arcos com um arqueteiro e atravessador reincidente a caminho da Suíça, e depois da Inglaterra. Certamente o preço a ser coletado por vareta nestes casos – considerando o risco, o dispêndio do valor da passagem, a negociação em pessoa, etc. – era muito mais alto. O quadro da rede de comércio no Brasil é então de derrubada ilegal de árvore protegida (nossa árvore nacional), em áreas protegidas (incluindo o Parque Nacional do Pau-Brasil), com foco na venda internacional principalmente da matéria-prima bruta, devidamente fracionada para a confecção de um produto, o arco, de considerável prestígio social, que se insere na “alta cultura”. As transações começam ilegais e a preço de banana, na ponta inicial, e podem chegar a valores bastante altos, na ponta oposta, após o trabalho altamente especializado de arqueteiros.

Alguns problemas: o pau-brasil está oficialmente classificado como “em perigo” de extinção; o destino de todas as apreensões realizadas pelo IBAMA dessa madeira era o mercado musical – mais de 92% no exterior; mais de 200 mil arcos e varetas sem origem legal já foram apreendidos pelo IBAMA; é estimado que mais de 90% da madeira cortada é eliminada, por não ser adequada à fabricação de arcos; dizem (ainda não há estudo sobre isso) que leva 80 anos para uma árvore estar pronta para ser utilizada na fabricação de arcos; um estudo indica que leva de 40 a 50 anos para que o pau-brasil chegue a uma circunferência à altura do peito (CAP) de 30cm; iniciativas internacionais de plantio de mudas da planta no Brasil para conservação e exploração comercial ainda não geraram madeira para o comércio, não estão registradas no IBAMA, não são geridas para a futura produção de madeira para arcos, e solicitações para o corte comercial revelaram indícios de serem tentativas de mascarar madeira de origem ilegal.

Os dados do parágrafo acima estão no documento submetido pelo governo brasileiro à CITES, Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora), para consideração no encontro que está ocorrendo, de 14 a 25 de novembro de 2022, na cidade do Panamá. CITES é o acordo internacional que estabelece as diretrizes, restrições e classificações de espécies em relação ao comércio internacional, a partir de encontros realizados a cada três anos. No documento brasileiro é proposto que o pau-brasil passe do Apêndice 2, que compreende comércio internacional monitorado e regulado, para o Apêndice 1 da classificação, que proíbe todo o comércio internacional. No documento de 14 páginas é apontada a necessidade, em viagens de musicistas, do porte de passaportes para arcos feitos de pau-brasil – atualmente, não é necessário portar documentação do tipo para viajar com um arco. O conteúdo da proposta brasileira deixou parte dos musicistas clássicos de instrumentos de cordas friccionadas, arqueteiros e simpatizantes, mundo afora, em polvorosa. 

Está circulando nas redes sociais um abaixo-assinado intitulado (em francês) “Contra a classificação da madeira de Pernambuco no Apêndice 1 da CITES”, que pode ser lido em seis línguas e que no momento conta com mais de 18 mil assinaturas. Reportagens nos jornais franceses Le Figaro e Le Monde reverberaram posicionamentos contrários no meio musical. Emergiram protestos em nome da IPCI, a “Iniciativa Internacional pela Conservação do Pau-Brasil” (International Pernambuco Conservatory Initiative), da “Aliança Internacional de Arqueteiros e Fabricantes de Violino pelas Espécies em Perigo” (International Alliance of Violin and Bow Makers for Endangered Species) e de outros grupos. A presença do nome de grandes personalidades da música clássica como Yo-Yo Ma, Martha Argerich, Simon Rattle e outros garante a respeitabilidade e demonstra a força dessas movimentações.

A proposta brasileira à CITES relativa ao pau-brasil será provavelmente rejeitada: o Secretariado da organização, que dá um parecer sobre cada solicitação submetida, recomendou a não aprovação, apontando inadequação de elementos específicos da proposta.

Manifestações contrárias nas mídias internacionais mencionam que a IPCI, que existe desde o ano 2000, já plantou mais de 340 mil mudas de pau-brasil em solo brasileiro; que a comunidade musical, especialmente os arqueteiros, tem grande preocupação com a preservação do pau-brasil, contribuindo ativamente para isso; que a madeira de apenas uma árvore é o suficiente para gerar uma grande quantidade de varetas, e que uma exploração sustentável seria viável; que as restrições propostas iriam criar enormes dificuldades e dispêndios para o deslocamento de orquestras, solistas e musicistas individuais; que a comunidade da música clássica não deve ser apontada como bode expiatório pela inabilidade do governo brasileiro em impedir e controlar o desmatamento ilegal da Mata Atlântica, habitat do pau-brasil.

Um documento relevante, encaminhado à CITES para manifestar discordância com a proposta brasileira relativa ao pau-brasil, é a carta aberta da presidente da FUNBRASIL (Fundação Nacional do Pau-Brasil), Ana Cristina de Siqueira Lima. Mencionando feitos importantes da FUNBRASIL, que incluem uma história de plantio de cerca de 2 milhões e 700 mil mudas da árvore, o documento se propõe a apontar possibilidades para um comércio sustentável. É sugerida a implementação de uma taxa no pau-brasil comercializado para a fabricação de arcos, a ser revertida no plantio de dez novas árvores por quilo de madeira. Ainda mais pertinentes, talvez, são as informações apontadas com relação à viabilidade do corte de árvores jovens para fabricação de arcos. A partir de observações de um pequeno estudo, com limitações metodológicas – são mencionadas apenas três árvores derrubadas, duas de 31 anos e uma de 22 anos –, é indicada a existência de uma variedade de pau-brasil que se entende poder ser utilizada com menos de 20 anos de idade. (O documento brasileiro enviado à CITES mencionava a idade de 80 anos para a utilização em arcos, reconhecendo a ausência de dados científicos para esse número.) A árvore estudada de 22 anos gerou 26 varetas para a confecção de arcos.

A idade de 22 anos dessa árvore é de interesse, pois as primeiras iniciativas da IPCI datam do ano 2000, há justamente 22 anos atrás, e vieram a incluir o plantio de mudas no Brasil. Já o número de varetas extraídas da árvore, 26, contrasta fortemente com números alardeados para afastar percepções que associem a fabricação de arcos a práticas predatórias. Jacques Carbonneaux, representante da Câmara Sindical da Fabricação Instrumental francesa (Chambre Syndicale de la Facture Instrumentale), por exemplo, afirmou ao Le Figaro que “uma única árvore de pau-brasil é o suficiente para a produção anual dos cerca de 100 arqueteiros franceses”. A IPCI, em afirmação similar, estimou que uma única árvore é o suficiente para prover varetas suficientes para toda a vida profissional de um arqueteiro, informando que seus membros produzem entre 10 e 20 arcos por ano. Se considerarmos então uma média de 15 arcos por ano por arqueteiro, seriam necessárias 1.500 varetas para um ano de trabalho de 100 arqueteiros franceses, conforme mencionado por Carbonneaux. E considerando uma carreira de 30 anos para um arqueteiro que mantém uma média de 15 arcos por ano, seriam necessárias 450 varetas para toda sua produção de vida, a partir das afirmações da IPCI. As 26 varetas de fato extraídas de uma árvore de 22 anos estão a uma distância enorme das 450 ou 1.500 varetas calculadas aqui a partir dessas duas projeções. Com 26 varetas por árvore, seriam necessárias 18 árvores para se chegar a 450 varetas, e 58 árvores para se chegar a 1.500 varetas. É claro, se levarmos em conta as proporções de espécimes mais velhos ou mesmo centenários, o número de varetas por árvore certamente aumentaria muito. Mas esse tipo de corte não tem sido apontado por ninguém, ao menos não explicitamente.

Há ainda mais dificuldades para a utilização do pau-brasil em arcos, como se pode ler no seguinte trecho de reportagem do jornalista Russ Rymer, de 2004, que resume outros problemas:

A madeira tem seus inconvenientes. Pode ser espinhosa e retorcida, e muitas vezes é muito leve ou inadequada para a fabricação de bons arcos. Os substitutos têm sido procurados há muito tempo. Uma vareta de arco toda de aço foi testada em meados do século XIX e, mais recentemente, arcos de fibras compostas foram produzidos com críticas aceitáveis, embora ainda não tenham rivalizado com pernambuco em qualidade ou popularidade. A falta de confiabilidade da madeira pernambuco também a tornou cara: um especialista do século XIX sustentou que era possível passar por oito a dez toneladas de pau-brasil até se encontrar a madeira para um único e excelente arco de 70 a 80 gramas. Embora essa proporção tenha sido melhorada drasticamente por técnicas modernas, ainda há muito desperdício. Apenas uma parte das melhores árvores é adequada para arcos excelentes, e os lenhadores nas florestas, descuidados com a conservação e ignorantes das necessidades dos artesãos, são conhecidos por derrubar árvore após árvore antes de encontrar uma contendo madeira utilizável.

Duas perguntas, a partir dos pontos acima: as 26 varetas da árvore de 22 anos eram de alta qualidade? E as alegações de que o corte de uma única árvore gera um grande número de varetas de qualidade, não seriam enormemente exageradas, considerando a prática real? 

Há grande consenso com relação à necessidade de que o pau-brasil continue a ser extraído e comercializado. Frequentemente vocalizados na forma de frases de efeito, exageros e até chauvinismo (principalmente por parte de franceses – a excelência em arcos é motivo de orgulho nacionalista), argumentos elencados revelam preocupações focadas na manutenção de práticas artísticas estabelecidas e na gestão da imagem do meio musical, apresentado como agente virtuoso na preservação do pau-brasil. Mas se toda a extração de pau-brasil é destinada ao mercado musical, revendedores e arqueteiros receptores de madeira ilegal (a maioria fora do Brasil) não seriam também parte do meio musical, além de parte do problema? Há dois meios musicais, um bom e um mau? Há os que contribuem para a preservação do pau-brasil e querem um comércio justo, aparentemente a maioria, e outros que contribuem para a espoliação ilegal?

Vários grandes arqueteiros do presente têm seus estoques de varetas de alta qualidade em quantidade suficiente para toda a sua carreira, adquiridos anos antes das preocupações mais substantivas com sustentabilidade, que datam das últimas duas décadas. Suas manifestações sobre o tema costumam ser na defesa das próximas gerações de arqueteiros. Mas e seus próprios estoques, são eticamente defensáveis? Como foram as condições de corte na época? E no caso dos grandes arqueteiros do passado? Não é difícil entender que a madeira para arcos sempre foi, no mínimo em larga medida, desde tempos coloniais, fruto da espoliação que devasta recursos naturais na periferia ou semiperiferia do sistema-mundo para proveito principalmente em países centrais. Esforços para reverter esse quadro são bem-vindos. Mas quanto aos frequentes louvores à moralidade, enquanto grupo, de agentes historicamente beneficiados por essas práticas ainda vigentes, e justamente por combate (insuficiente) a essas práticas, é melhor que estes louvores sejam deixados de lado. Até porque uma discussão séria por avanços só progride por outros caminhos, com foco no que fazer. Conheci, individualmente, excelentes pessoas do ramo, como o respeitado e simpático Edwin Clément, autor do melhor arco que tenho, voz ativa no movimento pela conservação do pau-brasil. Entendidos como um coletivo de agentes de uma prática social coesa, no entanto, a categoria dos arqueteiros tem, ontem e hoje, mesmo se reconhecendo seus méritos artísticos, um lado do qual não deveria se orgulhar. E o mesmo vale para seus consumidores musicistas.

Há uns 15 anos atrás, mais ou menos, fui interpelado por um arqueteiro em seu ateliê na rue de Rome, em Paris, endereço de várias célebres casas de comércio musical, sobre a possibilidade de eu participar no tráfico de varetas, claramente como um convite. Ele sabia que eu era brasileiro, já nos conhecíamos há alguns anos. Haveria gente no Espírito Santo, o preço que ele pagava pelas varetas estava altíssimo, ele poderia me dar um arco excelente como pagamento. Desconversei, não tinha nenhum interesse. O tom era de atividade ilegal, e logo fiquei sabendo que ele de fato tinha já uma fama por fazer negócios escusos. Menciono o episódio apenas para ilustrar que as “maçãs podres” do meio musical não estão necessariamente escondidas ou longe dos grandes centros. E que a receptação de madeira ilegal, no caso, não seria ingênua, como podem fazer crer os que apontam problemas apenas no lado brasileiro das atividades com pau-brasil.

Há muitos discursos elevados quando o assunto é a prática musical clássica e a importância do pau-brasil nas próprias possibilidades artísticas alcançadas no violino, viola, violoncelo e contrabaixo. Iniciativas de plantio e preservação podem ser insuficientes, mas é importante reconhecer que ocorreram. Um comércio sustentável é apontado como possível. As complexidades na extração da madeira para o feitio de arcos, no entanto, parecem ser muito mais desafiadoras do que as do quadro que comumente se pinta, no meio musical, ao se referir ao corte. Quais pessoas e organismos dirigiriam iniciativas de exploração sustentável e de comércio justo, e como isso seria implementado e conduzido, permanecem como incógnitas. Enquanto isso, a espoliação da nossa árvore nacional continua.


Camilo da Rosa Simões é professor de Violino no Instituto de Artes da UFRGS

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