Ensaio

A vida na hiperinflação: lembram-se de como era?

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A vida na hiperinflação: lembram-se de como era? Foto: Fernando Seffner

A Argentina tem frequentado, nos últimos anos, posições entre os cinco países com maior índice inflacionário no mundo e, em alguns momentos, na posição de topo de tais rankings. Sua população aprendeu a conviver – ou a sobreviver – a tal fenômeno, no dia a dia. É destes aprendizados que o artigo trata. São aprendizados difusos, revelados a partir de pequenas atitudes e falas, todos eles oriundos dos saberes da experiência. Também os bancos e os estabelecimentos comerciais aprenderam a viver neste cenário, traçando estratégias. Brasileiros e brasileiras já vivemos períodos inflacionários intensos no passado, e nunca se sabe se não voltaremos a lidar com isso um dia, desejo que não. Vale então examinar com atenção aspectos da vida diária em Buenos Aires neste quesito. Comento uma parte pequena de tudo que tenho observado, e aviso que este não é um artigo de economista.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi a quantidade de dinheiro que as pessoas portam. Estou na última fileira de assentos do ônibus, aquela mais elevada, sobre o motor, onde há cinco lugares. Um sujeito se senta no assento vago entre o meu e o de uma senhora. Em seguida abre a bolsa, e começa a contar notas de mil pesos. Ele tem uma grande quantidade de notas. Organiza em maços, e logo guarda tudo. Está nitidamente conferindo o valor de uma transação recente. A senhora e eu olhamos a cena. Nossos olhares se cruzam. Ela esboça um pequeno sorriso. A vida segue. Tenho dólares comigo, que trouxe do Brasil. Conversei com colegas da universidade, indagando se desejavam comprar. Sigo uma tendência que vejo muito forte aqui. Tentar resolver as coisas entre as pessoas, sem mediação das instituições, das quais todo mundo desconfia muito. A tia de uma colega se interessou em comprar os meus 200 dólares. Combinei com seu marido, e fui a seu escritório de advocacia no centro da cidade. Dali eu iria visitar um museu. Ao fazer a troca, percebi que o número de notas era elevado demais, para o meu gosto pelo menos, para andar circulando com aquilo enfiado nos bolsos da bermuda e na pochete. Voltei para casa, guardei as notas, e saí novamente.

O pagamento em dinheiro, ou “em efetivo”, como aqui se diz, traz descontos em várias transações, especialmente no pequeno comércio. Já nos grandes supermercados muitas vezes o uso do cartão ou do dinheiro não acarreta diferenças. E em muitos estabelecimentos pequenos não se aceita cartão de espécie alguma. Ao comprar um liquidificador em uma loja enorme, descobri no momento de pagar que só aceitavam dinheiro ou cartão de débito. Expliquei que meu cartão só funciona na função crédito, expliquei que era estrangeiro, fui muito bem tratado, fiz o negócio pelo valor estabelecido usando a função crédito com pagamento em uma vez. Saí da loja recebendo um abraço do vendedor, que me dizia “aqui na Argentina, com essa situação econômica, estamos sempre negociando, a todo momento”. Há cartazes em muitos estabelecimentos dizendo que eles são obrigados a aceitar cartão de débito. Não consegui entender ainda se isso vale para todos os estabelecimentos, porque em muitos deles não se aceita.

Foto: Fernando Seffner

Ao fazer compras para a casa em um supermercado de médio porte aqui no bairro, na hora de efetuar o pagamento a moça do caixa, de modo muito gentil, me fez ver que, se eu gastasse apenas um pouco mais, iria atingir o patamar que dava o direito a um desconto de 15%, e me apontou o cartaz que informava isso. Aconselhou a levar mais um produto. Retornei e peguei uma embalagem de gel de limpeza. Atingi o valor, o desconto foi aplicado. Havia duas pessoas na fila atrás de mim. Elas esperaram com gentileza. Agradeci e me fui embora. Eu poderia narrar muitos outros pequenos momentos de diálogo ao fazer compras. Tal prática coincide com meu temperamento pessoal, pois eu adoro puxar assunto, conversar, saber até por que tais prédios têm tal nome e outros têm outro nome! Na fruteira – estas em geral só aceitam pagamento em efetivo – me dispus a levar oito bananas. O rapaz que atendia perguntou se eu ia consumir de imediato todas elas. Disse que de imediato ia consumir apenas três delas. Recomendou então que eu levasse três das muito maduras, que custavam um pouco menos, e as restantes das menos maduras, que custavam um pouco mais caro. Foi o que fiz, agradeci, e conversamos um pouco mais. E já fiquei sabendo que as bananas vêm do Equador e da Bolívia.

A extrema flutuação de preços transforma cada ato de compra em uma negociação, e a negociação tem o dom de politizar o ato de consumir, o que me parece interessante. No pequeno comércio que frequento, como minimercado, farmácia, padaria, cafeteria, locais de venda de comida pronta para levar, restaurante para almoço, hamburgueria, sorveteria, fruteira, temos frente a frente um pequeno comerciante e um consumidor. Pode ocorrer um clima de entre ajuda algumas vezes, o que me agrada sobremodo. As opções de pagamento são diversas, e as diferenças entre elas podem ser significativas.  Pagar com o cartão de débito, de crédito, ou em dinheiro? A partir de qual valor há descontos? Que dias da semana os descontos abrangem tais ou quais cartões, de tais ou quais bancos? Isso tudo oportuniza conversas entre os consumidores, e gera certo espírito coletivo, algo como um “nós contra eles”, embora possa não se saber exatamente quem são “eles” a cada momento. A palavra “casta”, que parece ter ingressado fortemente no vocabulário político aqui a partir da campanha e eleição do atual presidente, pode algumas vezes ser acionada para pensar este “eles”.

Aqui todo mundo com quem convivo – classe média – desconfia muito do sistema bancário, isso é algo intensamente perceptível nas conversas. Quando provoco o assunto, em seguida contam experiências pessoais de logro pelos bancos. Uma colega indicou que fosse ver o filme “Chau Buenos Aires”, com direção de German Kral. Fui ao Cine Gaumont, que é um cine estatal, e assisti. A situação se passa na crise de 2001, nos últimos momentos do governo de Fernando de La Rúa. E no contexto do chamado “corralito”, medida semelhante à que vivemos no governo Collor, quando se impôs um limite muito estreito para retirar o próprio dinheiro dos bancos. O desespero do personagem principal, e sua ira contra o banco, parecem refletir o sentimento geral das pessoas com quem convivo. 

Com tantas críticas ao sistema bancário, fiquei com a impressão inicial de que poucas pessoas tinham conta em banco. Fui ler artigos de economia e notícias em publicações da área. Descobri que algo como 80% dos argentinos e argentinas têm conta bancária. Nível próximo ao do Brasil. Mas uma pesquisa de opinião recente mostrou que apenas 48% da população manifesta possuir uma conta bancária. Tal dado se associa com outra informação de outra pesquisa, que indica que 8 de cada 10 pessoas retira todo o seu salário uma vez por mês. Ou seja, há pessoas que efetuam apenas uma operação bancária por mês. E um informe do Banco Central da República Argentina indica que o sistema bancário tem um nível elevado de automação e oferta de serviços em aplicativo, mas que, do total de titulares de contas correntes que poderiam desfrutar desses serviços de homebanking, apenas 35% chegam a registrar-se, e destes apenas 24% efetivamente usam tais dispositivos com regularidade. 

Não sou economista, mas no meio que tenho circulado aqui a impressão mais forte que fica é que todo mundo tem reservas em dólar. Ou em euros, porque tenho colegas que têm cidadania espanhola ou italiana, o que parece ajudar nisso. Considerando que vejo agências bancárias por todo lado na cidade, na mesma proporção que no Brasil, acabo deduzindo que elas têm alguma capacidade ociosa. Percebo também duas diferenças em relação ao Brasil no sistema bancário. A primeira é que há uma profusão maior de bancos aqui, com os nomes mais diversos, privados e públicos. A segunda é que os prédios das agências bancárias me parecem enormes na comparação com o Brasil, e lá dentro trabalham montes de pessoas. Sinto falta aqui das filas nas agências lotéricas, e descubro que elas não realizam operações como no Brasil. E me espanto com a quantidade de casas de câmbio, algumas com filas gigantescas na porta. Naquelas localizadas nas regiões mais centrais e turísticas da cidade, achei inclusive algumas com cartazes de ACEITAMOS PIX. Não apenas no centro, mas nos bairros mais distantes em que tenho caminhado, há lojas de câmbio, sempre com pessoas fazendo operações. 

Foto: Fernando Seffner

Buscando informações sobre quem frequenta tais casas, para além dos turistas, descubro uma pesquisa de fevereiro deste ano que indica que 9 de cada 10 argentinos que vão a casas de câmbio trocam dólares por pesos, para cobrir gastos com dívidas diversas em moeda nacional e no cartão de crédito. Outra notícia de jornal, também de fevereiro deste ano, informa que uma queda na cotação do dólar blue, este que os argentinos podem trocar de modo livre, é indicativa do grande afluxo de pessoas que vendem dólares no contexto atual, o que lhe baixa um pouco a cotação. Essa presença forte do dólar na vida diária, e já por tantos anos, combinada com a desvalorização do peso argentino, explica um pouco por que a proposta de dolarização completa da economia, feita por Milei, tem seguidores. E explica frases do presidente que parecem ecoar na vida econômica diária, especialmente aquela em que ele compara o valor do peso argentino com o valor de excrementos fecais.

Finalizo com uma tentativa de resposta à pergunta que me fazem muitos colegas brasileiros, desde que aqui cheguei em início de janeiro para período de estudos. A vida está barata para os brasileiros em Buenos Aires? Até este momento, a minha resposta é sim e não. Quando compro comida, vou a cafeterias, sorveterias, padarias, restaurantes, me dou conta que pago um valor mais barato do que no Brasil, por uma comida de qualidade certamente superior. Mas quando necessito de outros produtos, como alguns produtos de farmácia, na ferragem, na compra de toalhas de banho, me dou conta que são caros em comparação com os preços brasileiros. Volto ao exemplo do já citado liquidificador. No apartamento em que estou não havia liquidificador, decidi comprar um, não vivo sem este equipamento de cozinha. Pesquisei em três grandes lojas na avenida do bairro. Comprei aquele mais barato, de uma marca existente no Brasil. Ele custou, ao câmbio do cartão de crédito no dia da compra, 181,16 reais. Em pesos o valor da compra registrado na nota fiscal foi de 34.999,00. Fiz uma experiência que tenho feito muito aqui com produtos outros que não comida: entrei nos sites de grandes magazines brasileiros, e me dei conta que um liquidificador de marca e características semelhantes eu poderia ter comprado por cem reais. Além do mais, poderia ter pagado em até dez vezes pelo valor à vista sem acréscimo, algo aqui impensável. 

Já fiz essa experiência com alguns produtos de farmácia, com varal de roupa na ferragem, com aparelho de ar-condicionado, com ventilador, com televisão, com mala de viagem e com mochila. A situação se repete: são caros em comparação com os valores praticados no Brasil. Ao comentar tal experiência com minhas colegas da Faculdade de Educação aqui da Universidade de Buenos Aires, a resposta foi: isso só comprova o que sentimos no dia a dia, a vida está muito cara! 

Voltarei ao tema da economia em outros artigos. Inclusive porque há uma expectativa enorme de piora nos próximos meses, e de melhora a partir de maio ou junho. Ela não é apenas uma expectativa. O próprio presidente anuncia isso com alarde, como é de seu estilo, indicando que este é o caminho de um remédio amargo, mas que vai conduzir à cura ou, mais propriamente, à redenção, como é de seu perfil religioso fundamentalista. Há grafites pelas ruas dizendo que o processo não é de dolarização, mas de dolorização, tendo em conta que “dolor” é a palavra em espanhol para dor. Estou anotando preços, fotografando produtos nos supermercados, fotografando menus de restaurantes, fotografando tabelas de preços em padarias e outras lojas, e anoto a data da foto e o nome do estabelecimento. Ao fotografar, só faço repetir o que vejo muita gente fazendo aqui frente a listagens de preços. Com isso colho dados para artigos comparativos mais adiante. Aguardem!


Fernando Seffner é professor na Faculdade de Educação UFRGS.

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