Ensaio

Albert Camus, pensador acrônico

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Albert Camus, pensador acrônico

Homenagem ao célebre artista e pensador que, nesse mês, completaria 110 anos de seu nascimento

O pujante sol mediterrâneo impunha, no interior do território argelino, seus mais conotativos efeitos e significados. Esses foram, a partir do longínquo 1913, percebidos por alguém que, décadas mais tarde, descreveu-as no papel. Não há, pode-se dizer, nome e sobrenome que mais proporcionou cores e que mais difundiu os efeitos da vida ao sul do Mar Mediterrâneo que Albert Camus (1913-1960), aniversariante desse mês, em 7 de novembro.

Descendente de franceses que migraram para o Magreb, Camus se mudou, muito jovem, de uma cidade que sequer existe mais (Mondovi) para Argel, a capital. A morte do pai na I Guerra Mundial sentenciou a família, que já era paupérrima, a uma condição ainda pior financeiramente. O caso, na realidade, parecia se tratar de um roteiro previsível: a infância é substituída pelo trabalho e a vida se encerra seguindo o ciclo de seus progenitores, trabalhando para que seja possível sobreviver.

Fala-se de um caso diferente, no entanto. A Camus foi garantida, pela mão de um professor, a sequência da formação escolar, ainda muito jovem. A mãe, analfabeta e parcialmente surda, relutante, consentiu, e as consequências dessa decisão refletem ainda hoje, 110 anos depois do dia em que nasceu o escritor. Afinal, ainda que tivesse, ao longo de sua formação, trabalhado em uma série de empregos monótonos, que reluzem à ideia popular de cidadão comum, Camus possuía uma percepção diferente sobre a vida, que amadureceu consigo e, refinada, tornou-se núcleo duro de seu pensamento. A morte prematura, cuja tragédia pôs ponto final em sua trajetória aos 46 anos, não foi capaz de tornar sua obra menos profícua.

Antes, chega a ser irônico, na realidade, o fato de alguém, como Camus, que, durante muito tempo, defendeu o acaso como a regra superior do universo, negando quaisquer diretrizes divinas, tenha falecido como tal. Quer dizer, abdicou de sua passagem de trem para sentar em um dos bancos do garboso Facel Vega FV2 de seu editor, que acabaria colidindo com um plátano, vitimando dois de seus quatro tripulantes.

Camus morreu na hora, as duas mulheres ficaram ilesas, enquanto Michel Gallimard morreu dias depois. “A seus amigos, Camus dizia, com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel”, conta Olivier Todd, biógrafo do escritor. A ironia reside em se tornar, em certo sentido, vítima de seu próprio discurso.

Mas a efemeridade da vida sempre esteve contida na visão camusiana. Vive-se somente uma vez, conforme Camus; por isso, deve-se esgotar às fontes de prazer. Ateu, que sequer punha em questionamento a possibilidade de existir, por exemplo, vida após a morte. Defendia que a vida simplesmente não possuía sentido. Por esse motivo, a finitude e o regozijo deveriam andar juntos. Ao cabo, o fim derradeiro, que decreta ponto final ao sujeito, não se vê justificado senão pelo acaso. Quer dizer, sem determinações divinas ou predeterminações superiores. Eis o absurdo, esse permanente vazio, que é, por sua vez a pedra fundamental do pensamento do pensador pied-noir.

Não é raro, por isso, ouvir pessoas que entendem Camus como um escritor melancólico, difusor da angústia. Alguém que parte do suicídio, da perda de vontade de viver, para explicar o vazio que define a existência pode, de fato, ser mal interpretado. Porém, deve-se lembrar, o escritor entendia que, ao passo que nos tornamos conscientes sobre a imutabilidade de nossa condição, podemos viver uma vida, de fato, livre. Desamarrada de tradições impostas unilateralmente e cultivadas de maneira viciada.

Sobre isso, veja-se O estrangeiro, seu primeiro romance publicado. O fio-condutor do livro, Meursault, aparenta estar anestesiado em relação às convenções humanas. Quando sentenciado à morte, Meursault, nas últimas páginas, dá ares de um figurante que se percebeu, por acaso, como o protagonista da estória. Nota justamente a experiência que ele mesmo lhe furtou: “do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia”. Camus era um autor que exaltava a vida, na mesma proporção que desgostava da morte. Sem dar as costas às contradições associadas as duas coisas.

A condição humana, não obstante, não era o único tema do autor, embora seja seu carro-chefe. A matriz de seu pensamento se encontra, de fato, no ensaio filosófico O mito de Sísifo [1942] e se vê ramificada para a extensão de suas outras obras. Do absurdo, ele foi à revolta, criando o romance A peste [1947] e outro ensaio, desta vez, amaldiçoado, O homem revoltado [1951].

Vale a explicação: Camus era um pensador que se organizava por ciclos. Esses, por seu turno, possuíam a mesma raiz, com propósitos distintos, eram expansões da temática abordada. Assim, O mito de Sísifo compunha, junto com O estrangeiro e a peça teatral Calígula, o ciclo do absurdo. Enquanto isso, A peste, a peça Estado de Sítio e O homem revoltado, o da revolta.

No caso, havia, em Camus, a crescente insatisfação com o crescimento do nazifascismo. Aliou, assim, sua atuação no resistente jornal Combat aos seus fecundos esforços artísticos. Chamou, primeiro, a atenção sobre a capacidade desenfreada das epidemias políticas se multiplicarem, reforçando a necessidade de se manter fiel ao bem coletivo, em defesa da vida, acima de tudo. Depois, no ensaio maldito, tocou nessa e em outras feridas, criticando os intelectuais que defenderam e que ainda se mantinham em defesa das atrocidades stalinistas — bem como o próprio Stalin. Via, portanto, o arrivismo político como um problema a ser combatido: a eficácia política se escondia por trás de um discurso idealista, ao seu ver. Os regimes se desaguavam em corruptelas daquilo que pregavam, tornando-se um fim em si mesmos.

O tiro saiu pela culatra. Ao invés de estimular uma mudança no arranjo do xadrez político, foi atacado pelos intelectuais comunistas, em particular Francis Jeanson e Jean-Paul Sartre. Jeanson nunca teve simpatia pelo pensamento de Camus. Enquanto Sartre, cada vez mais alinhado ao regime soviético e o ideário comunista, endossou as críticas do primeiro. Em meio ao combate verbal nas páginas de sua revista, Les Temps Modernes, foi sacramentado o fim da amizade entre Camus e o existencialista.

Então, as obras do autor pied-noir foram retiradas de apostilas e, da mesma forma, o próprio escritor foi sendo isolado da intelectualidade francesa da época. Depois de sua saída do Combat, no fim da década de 1940, retornou ao jornalismo somente em 1955, no L’Express, o que durou cerca de um ano. Nesse ínterim, dedicou-se mais ao teatro do que à própria literatura, ainda que continuou exercendo seu papel como intelectual público, manifestando-se em falas públicas, a título de ilustração.

O retorno de seus romances no mercado editorial aconteceu somente em 1956, com A queda. Esse texto lembra, em extensão, seu primeiro sucesso romanesco, mas discorre sobre outras questões da sociedade. Dentre elas, elencar-se-á o tema da justiça. Salienta-se que no ano seguinte publica um ensaio em uma coletânea, também relacionado a essa temática; a meditação, todavia, relacionava-se à pena de morte.

Na realidade, o assunto “justiça” não era novidade. Os outros dois romances do autor, de uma forma ou de outra, abordavam a fragilidade na qual o judiciário (vulgo a justiça dos homens) se ampara, tal qual a justiça mundana, isto é, o código moral de justiça do submundo civil. Da mesma forma, a justiça foi um tema relativamente recorrente em seus escritos jornalísticos, chegando, por exemplo, a formular um binômio opositor: liberdade para todos versus justiça para todos. De acordo com Camus, a garantia de liberdade, irrestrita, fortalece a desigualdade; enquanto a justiça horizontal prevê a subordinação das personalidades em favor do bem-estar da coletividade.

Pode-se observar, enfim, que, neste breve ensaio, flutuou-se por entre poucos dos variados assuntos nos quais Camus desenvolveu teses e reflexões. A leitura cuidadosa do arcabouço camusiano leva a crer, sem dúvidas, de que se trata de um autor talentoso, o qual trazia consigo interrogações morais sobre o período em que esteve vivo. Os tempos mudaram, a sociedade se transformou, mas muitos desses questionamentos permanecem sem respostas.

Esse, talvez, seja o grande álibi para dizer que é um pensador que permanece atual. Afinal, os problemas de sua época possuem reflexos na vida contemporânea. O arrivismo político não parece uma pauta superada, tampouco é possível notar avanços na distinção, falando genericamente, entre justiça e vingança, revolta e ressentimento. Camus, portanto, fornece provocações para questionar nossa própria condição em face das pestes coletivas que, vez ou outra, espalham-se a ponto de tomar as rédeas da arena política.

Não se trata de encontrar respostas, todavia. Porque, como escrito pelo próprio autor, “uma obra absurda, pelo contrário, não dá respostas”, assim, “eis toda diferença” da grandeza que seu nome e sua obra carregam ainda hoje.


Arthur Grohs (né F. Simões Pires) é formado em jornalismo (UFPel), mestre e doutorando em Comunicação (PUCRS). 

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