Ensaio

Armênia no horizonte

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Armênia no horizonte Memorial do Genocídio Armênio, em Yerevan. Foto Daniel Scandolara, 2021

Em 2021, em plena pandemia e sem vacina, a UGAB1 Nova Iorque ofereceu um programa de orientação profissional chamado Global Leadership Program (Programa global de liderança). Na ocasião, foram levadas a cabo cerca de seis semanas repletas de palestras, aulas de armênio ocidental2, sessões temáticas e mentorias. Devido à calamidade sanitária global, pela primeira vez tudo se realizou virtualmente. Entre tantos armênios3 selecionados, eu era sempre a curiosidade: o único brasileiro e sem origens armênias. Muita explicação teve de ser dada aos colegas da França ou do Canadá. 

Tudo isso foi voltar alguns passos em direção ao passado, relembrar a explicação da estranheza lógica. O ano era 2013, eu estava no terceiro ano do ensino médio. Era a hora, nas classes de história, de estudar as Guerras Mundiais. Lemos, ouvimos, anotamos todo o ‘‘importante’’ sobre a até então chamada ‘‘Grande Guerra’’. Depois disso, era a vez de perceber como o resultado da dissolução dos Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano foi a chamada ‘‘paz dos vencedores’’; e como tudo isso, naturalmente, levaria a uma porção de razões que culminariam na II Guerra Mundial. 

O capítulo sobre a II Guerra já era muito maior, afinal esta subverteu o considerado como impossível para a maioria das mentes da época: ser maior e mais devastadora do que sua predecessora. Os fatos são fatos porque devem ser encarados, não-ignorados e entendidos. Estudar tal conflito inevitavelmente nos levaria ao horror extremo: o genocídio comumente conhecido como ‘‘Holocausto’’4. Havia muitas páginas no livro didático somente sobre esse crime brutal, o qual merece, de fato, toda a atenção.

Não obstante, foi neste momento que me lembrei que no mesmo livro havia, ao final do capítulo sobre a I Guerra Mundial, um pequeno box informando o chamado ‘‘primeiro genocídio do século XX’’. À parte da explicação que levou ao Genocídio Armênio, o verbete informava que em torno de 1,5 milhão de armênios tinham sido mortos durante o crime perpetrado pelas autoridades otomanas – em proporção, cerca de 2/3 de uma população que habitava, majoritariamente, o que hoje é chamada ‘‘República da Turquia’’ simplesmente foram varridos do mapa. Portanto, estamos falando de um genocídio, em sua tipificação ‘‘clássica’’ (exterminar certos grupos específicos em todo ou em parte5), basicamente ‘‘completo’’.  Aquilo tudo me pareceu muito duro de entender: como uma devastação tão grande tinha tão pouco destaque em nosso livro de história? 

Foi assim que a história da Armênia entrou na minha vida. Com 17 anos, as leituras começaram completamente aleatórias, navegando pela internet e descobrindo o que ela podia oferecer. Calhou também de ser um belo incentivo o fato de que uma das minhas bandas favoritas da época ser armênia, fato que só descobri depois que comecei a me informar mais sobre – curiosamente, hoje, a maior referência em ‘‘assuntos armênios’’ no Brasil começou toda sua trajetória de estudos acadêmicos a este respeito por ser um grande fã da banda6

Com isso, algumas coisas começaram a fazer mais sentido: o porquê de um conhecido alfaiate em Brasília, onde eu morava, atender pelo sobrenome de Kassabian; um colega de escola chamar-se Meguerian; ou o fato de que haver cerca de 40 mil armênios hoje no Brasil. Houve uma diáspora, uma grande dispersão dessa nacionalidade pelo mundo, a tal ponto em que se passou a ver uma tal de ‘‘Dona Armênia’’ em rede nacional, a mesma da qual lembrava eu ter ouvido o nome em alguma reunião de família em que o assunto fora ‘‘como eram melhores as novelas do passado’’. A segunda geração de italianos do Rio Grande do Sul falando do Brasil por meio do trabalho de uma armênia do Mato Grosso do Sul, Aracy Balabanian.

Esta grande presença, já parte da sociedade brasileira, remetia-me de volta ao que o pequeno box do livro didático que um dia me consternou: estavam aqui por conta do Genocídio, pelo trauma, pela sobrevivência. Eram os que tinham sobrado porque eram incapazes de aceitarem perecer. Eram os que, em meio à dor que estimula a morte, não deixaram de crer na vida. 

Verbos se acumulavam enquanto eu continuava a ler: ‘‘resistir’’, ‘‘reconstruir’’, ‘‘renascer’’; substantivos também: ‘‘cultura’’, ‘‘história’’, ‘‘fé’’. Mas existiria uma palavra para resumir os armênios? Por um bom tempo, busquei sabê-lo. Apaixonei-me pelo trabalho daquele que é talvez o mais conhecido escritor de origem armênia no mundo, William Saroyan, após ler algo que ele teria7 escrito, em alguma página online de conscientização sobre o Genocídio:

Eu gostaria de ver qualquer força deste mundo destruir esta raça, esta pequena tribo de pessoas sem importância, cujas guerras foram todas lutadas e perdidas, cujas estruturas foram todas destruídas, cuja literatura não foi lida, a música não foi ouvida, e as preces já não são mais atendidas. Vá em frente, destrua a Armênia. Veja se consegue. Mande-os para o deserto sem pão ou água. Queimem suas casas e igrejas. Daí veja se eles não vão rir, cantar e rezar novamente! Quando dois armênios se encontrarem novamente em qualquer lugar neste mundo, veja se eles não vão criar uma nova Armênia.

Pois ali então talvez estivesse o tal ‘‘resumo’’, em uma passagem literária tão conhecida pelos armênios espalhados pelo mundo; ali estivesse a palavra tão buscada, e esta seria ‘‘indestrutibilidade’’. Entretanto, não demorou para que eu percebesse, relendo a mesma passagem, que nem mesmo Saroyan acreditava na possibilidade de encontrar uma só palavra para definir seu povo: toda aquela busca era uma tolice justamente porque é a multidão de características, e não o resumo, que cativa. 

Foi assim, portanto, e depois de um bom tempo, que compreendi que a verdadeira raiz de minha admiração pela Armênia vinha dos próprios armênios e não de seus feitos imemoriais, conquistas, glórias ou tradições. Vinha do simbolismo de sua resiliência, da valia imensurável que emanava do fato de ainda estarem no mundo apesar de tudo, da força, que os levou adiante e os fez florescer, e que comportou sua inabilidade de esquecer o valoroso sentido de sua existência.

Saroyan me deixou claro o que eu havia visto, mas não enxergado. Contudo, entre o que ele escreveu e a vida de um armênio que vive no Cáucaso pairavam dúvidas – estas coisas que teriam de ser postas à prova no futuro, no lugar do mundo em que alguns chamam de ‘‘Armênia real’’. Este era o ‘‘novo termo’’ do qual eu queria saber o significado.


Notas
1 – União Geral Armênia de Beneficência, formada no atual Egito, no início do século XX. É a maior instituição de auxílio, suporte e fomento da causa armênia pelo mundo, com diversos escritórios pelo mundo, inclusive no Brasil.
2 – A língua armênia é essencialmente dividida em dois ‘‘ramos’’: o armênio ocidental, falado pelos armênios ao redor do mundo, e o armênio oriental, falado na Armênia atual (grosso modo).
3 – Há de se lembrar que a Armênia é uma nação diaspórica. Com isso, o entendimento majoritariamente aceito é que qualquer pessoa com origem armênia nascida fora do território da atual Armênia é considerada armênia – apesar de ser, por exemplo, de quarta geração. Portanto falamos em ‘‘armênios dos EUA’’, ‘‘armênios do Brasil’’ e, claro, ‘‘armênios da Armênia’’.
4 – É necessário enfatizar que este não é o termo mais adequado para denominar o genocídio aos povos judaicos perpetrado pelo nazifascismo.
5 – Sobre isso essa tipificação, conferir este link. Vale lembrar que o crime de genocídio, tão falado por nós hoje, não existia em lei internacional até tal Convenção, de 1948, e ratificada em 1951.
6 – Refiro-me ao professor Dr. Heitor Loureiro.
7 – A passagem abaixo é uma variação de uma parte de um texto que Saroyan publicou em seu segundo livro, Inhale & Exhale, de 1936. Tal trecho tornou-se muito mais famoso do que aquilo que ele realmente escreveu. Essa história pode ser conferida no seguinte link.


Daniel Lorenzo Gemelli Scandolara nasceu em Porto Velho, Rondônia. Atualmente doutorando pela UFRGS, morou a maior parte da vida em Brasília, onde obteve graduação em Ciência Política e mestrado em História, ambos pela UnB. Posteriormente, concluiu mestrado em Direitos Humanos e Democratização pelo Campus Global em Direitos Humanos Cáucaso, tempo em que viveu na Armênia. É autor do livro Um Estopim em 1914: a política britânica em relação ao Império Otomano e sua preservação e criador do blog Torto em Linhas Retas. Gosta de histórias.

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