Ensaio

Beyoncé enaltece as raízes negras da música country

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Beyoncé enaltece as raízes negras da música country

O último dia 29 de março marcou um acontecimento de escala global: o lançamento de Act II: Cowboy Carter, oitavo álbum solo de estúdio de Beyoncé. A artista estadunidense costuma ocupar o topo da Billboard 200 desde 1998, quando ainda fazia parte do grupo Destiny´s Child. Foi também com o trio que iniciou sua coleção de Grammy´s em 2001, acumulando hoje o maior número de estatuetas da história: 32 no total. Nos últimos 20 anos, em carreira solo, Bey vem reinventando o mercado fonográfico e a cultura pop ao combinar talentos artísticos indiscutíveis (assim, no plural mesmo) com estratégias bombásticas de marketing. Resultado: qualquer movimentação da diva se converte instantaneamente em um mega evento, alguns com efeitos que extrapolam o âmbito cultural, como ondas de migração regional, aumento na inflação de um país ou incremento no PIB de outro. Portanto, as circunstâncias que levaram Bey ao mergulho na música country, assim como a forma que escolheu para expressar o que encontrou enquanto imergia, carregam significados e implicações que precisam ser considerados. E o centro de sua mensagem me parece facilmente reconhecível: “Tenho consciência de quem eu sou e de quem me trouxe até aqui. Desistam de me afastar, porque sei que esse espaço também é meu”.

O modo que Beyoncé encontrou para lidar com a pandemia de Covid-19 foi produzir. Durante o isolamento social, ela gravou a obra que dividiu em três atos e começou a trazer a público em 2022, com Renaissance. No álbum, transformado depois em uma turnê internacional e um filme dirigido por ela mesma, a cantora celebra as origens negras da house music. Portanto, Cowboy Carter traz a continuação desse trabalho de arqueologia musical. O estardalhaço em função do seu lançamento, porém, foi um pouco maior, visto que não foi somente a BeyHive[1] que gritou estridentemente. “O terreno, dessa vez”, disseram, “já tem dono” ― e são os sulistas brancos conservadores. Inclusive houve a promessa de que um álbum de Beyoncé jamais tocaria em rádios country. Nenhuma surpresa. Cowboys e cowgirls já haviam rejeitado a artista antes. Como ela explicou em uma longa (portanto, inusual) legenda do Instagram, Cowboy Carter é produto dos estudos que fez após passar por uma situação na qual não se sentiu bem-vinda. A referida situação seria a apresentação de Daddy Lessons, música country presente no seu álbum Lemonade (2016), no Country Music Association Awards, quando dividiu o palco com o trio Dixie Chicks. Bey foi alvo de inúmeras e fortes críticas ― além de ataques racistas ― porque supostamente estava em um espaço musical ao qual não pertencia. Além disso, seus posicionamentos políticos (como a crítica à violência policial que fez em Formation, primeiro single de Lemonade) eram tidos como excessivamente progressistas, representando um desrespeito aos frequentadores da premiação. A repercussão negativa teve tamanho vulto que a postagem do evento na qual sua presença era anunciada foi apagada pela organização. O ponto é que Beyoncé sempre honrou suas origens sulistas, mencionando-as em diferentes trabalhos, e, como ficou evidente agora, não tem qualquer intenção de mudar sua postura quanto a isso.

Cowboy Carter é sobre identidade e pertencimento, sobre autodeterminação e disputa material e simbólica. O sociólogo e ativista negro W.E.B. Du Bois (1868-1963) nos legou uma lente poderosa para enxergar esse quadro com bastante nitidez: a noção de dupla consciência. Em 1903, Du Bois descreveu a experiência de seus irmãos e irmãs negros estadunidenses como única, porque dual. Haveria, segundo o autor, uma constante luta interna aos indivíduos na qual a identidade racial e cultural negra se debatiam com a percepção que a sociedade branca tinha dos negros. Nesse contexto, ser uma pessoa negra provocaria

[…] uma sensação peculiar, essa consciência dual, essa experiência de sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena. O indivíduo sente sua dualidade — é um norte-americano e um negro; duas almas, dois pensamentos, duas lutas inconciliáveis; dois ideais em disputa em um corpo escuro, que dispõe apenas de sua força obstinada para não se partir ao meio[2].

Essa cisão seria a principal marca da história da população negra dos Estados Unidos. Consequentemente, ocorreria o esforço constante para entender-se como pessoa em um movimento de “fundir esse duplo eu em um único indivíduo, melhor e mais verdadeiro[2]”. Em última análise, o que estava em questão era a desejo de ser negro e estadunidense ao mesmo tempo, sem enfrentar o preconceito e a discriminação daqueles que, em tese, eram os únicos com direito à cidadania. “Este, então, seria o fim de seu conflito: ser um colaborador no âmbito da cultura, escapar da morte e do isolamento, compartilhar o uso de suas melhores capacidades e de seu gênio latente[3]”.

Ou seja, ao ignorar a “acusação” de ser negra demais, mulher demais e progressista demais para calçar botas western, Beyoncé gera bug em uma sociedade que cinde para invisibilizar, oprimir e explorar. Mrs. Carter é uma texana negra e, guardados alguns cuidados de mediação, é possível exercitar interessantes comparativos entre o estado da estrela solitária e o do chimarrão. Como dançar na frente do espelho, essa prática pode evidenciar os movimentos feitos, trazendo mais autoconsciência e permitindo mudanças e correções, se necessário. Enquanto mulher negra gaúcha, tenho certeza de que seria terapêutico e libertador. Muito bem-vindo, aliás.


Notas
[1] BeyHive (trocadilho com beehive, que significa “colmeia” em inglês) é um grupo considerável da população mundial composto por mim e outros fãs devotos e ensandecidos de Beyoncé.
[2] DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. Ilustrações de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. São Paulo: Veneta, 2021 [e-book Schaffer Editorial].
[3] Ibid., p. 22.
[4] Ibid., p. 22.


Daniela Santos é doutoranda em Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde integra o Laboratório de Estudos sobre Diferenças, Desigualdades e Estratificação (LEDDE) e pesquisa as infâncias das crianças negras sob a perspectiva interseccional. É mestra em Administração com ênfase em Teorias Organizacionais e bacharel em Comunicação Social com ênfase em Relações Públicas, ambos os cursos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como pesquisadora e consultora para organizações de impacto social positivo.

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