Ensaio

Chiriguanos e o que tu vais usar no inverno

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Chiriguanos e o que tu vais usar no inverno

Parece, afinal, ser mito, nada mais, a versão segundo a qual o nome dos índios chiriguanos teria por etimologia algo como “os que não aguentam o frio” ou “os que morrem de frio”. Os guerreiros guaranis, mais tarde mestiçados com chanés, eram oriundos da Amazônia e, capturados alguns pelos inimigos incas em território hoje boliviano, teriam sofrido, até a morte, atados e nus, o suplício do frio em um pico da cordilheira – e ainda de inhapa (“yapa”, no quéchua dos incas) recebido a pecha, o apelido, a pura e cruel gozação. 

Cruel até porque, depois de realizar sagas migratórias em busca da Terra sem Males e constituir inimigo inquebrantável diante do espanhol e do Inca, ser taxado de frouxo por não resistir a um friozinho (está bem: andino) é no mínimo injusto. 

Mas é frouxo, então, quem não aguenta o frio?

Teve tremenda repercussão, recentemente, uma foto de alguns gaúchos serranos tomando mate vestindo apenas calções e calçando chinelos, em plena neve. Provas de resistência física são afirmação da masculinidade e da potência da etnia desde sempre e mundo afora. Mas há algo curioso e particular que diz respeito ao frio, senti-lo, sofrê-lo ou enfrentá-lo, aqui neste nosso sul brasileiro. 

Aureliano de Figueiredo Pinto o desafia; Vitor Ramil o estetiza; os estrangeiros, hoje e há 200 anos, como é o caso de Saint-Hilaire, não alcançam entender nossa relação com ele. Sim, porque o francês declarou seu espanto diante da falta de proteção de que um porto-alegrense do início do século XIX dispunha para as baixas temperaturas que anualmente se verificam. Estranhou-lhe a falta de lareiras, estufas, boa vedação, arquitetura condizente com o clima. E o mesmo dizem, hoje, os visitantes oriundos de países que registram temperaturas muito mais baixas e nos confessam que nunca passaram tanto frio como aqui… 

Alguém (como Saint-Hilaire) lembrará razões lusitanas (ou açoritas), sobretudo na arquitetura; não faltará quem aponte a nossa anedótica homogeneidade nacional para alguns aspectos da identidade, subalternizando traços regionais. Válidos ambos os argumentos. Só que é preciso notar que o frio gaúcho não é sempre ou apenas negado, ignorado, invisibilizado. 

É verdade que um rio-grandense, numa noite de inverno em um hipotético bar de São José dos Ausentes, talvez pudesse cantar, acompanhando o músico da casa e se sentindo representado, algo como “moro num país tropical abençoado por Deus etc.” (lá fora, a neve e temperatura sobradamente negativa…) 

O que nos faz dizer que platinos (que, aliás, informados pelo mesmo estereótipo que nos afeta internamente, têm o ditado “mais perdido do que brasileiro no inverno”) são elegantes no vestir, senão o fato de que usam vestuário adequado para o mesmo frio que se sente no sul do nosso país? 

Prodígios da gestão colonial e imperial; vigores do Getulismo; até condões do período militar podem ajudar a explicar esse efeito da homogeneização da identidade nacional.

Mas o que dizer quando, diante de um amigo que vista um poncho (principalmente) ou um sobretudo pesado, em um dia de julho em que o termômetro marca bem menos de dez graus, o gaúcho perguntar, desafiador e jocoso: “o que é que vais usar no inverno????”

Numa paródia meio atravessada da boa piada velha do “nós quem, cara-pálida?” é como se perguntasse “que frescura é essa de sentir frio e proteger-se dele, chiriguano?!?”

Aí não está, certamente, o frio negado – ao contrário: é protagonicamente reconhecido e significado como índice de resistência, como alguma forma de qualificador do habitante da região.

Passa-se frio ou ao menos não se ostentam os agasalhos, mesmo que em detrimento do conforto, uma vez que certamente uma superposição de roupas de pouco efeito isolado (e isolante) não se compara à eficiência de um bom abrigo.

Toma-se mate de calção na neve e reserva-se aos índios suscetíveis o desconforto com o frio. Enquanto isso, Aureliano chama para a liça: “aqui estou, Senhor Inverno”.

Só o fronteiriço consegue realmente negar a fronteira, dizer que o território é o mesmo e contínuo, não há distinção – enquanto identifica mil traços que, contraditoriamente, o fazem tipicamente fronteiriço, dos quais, zeloso, não abre mão. 

Será assim, com essa espécie de Ética do Frio? Dizer que se resiste a ele e que ele nos dá nossa têmpera passa, talvez, paralelamente, por dizer que ele não existe, ou não é tanto… e que só gente estranha e frágil se abrigaria cuidadosamente – ou morreria, desnuda e amarrada, num pico cordilheirano.


Demétrio de Freitas Xavier é cantor, violonista, intérprete da obra de Atahualpa Yupanqui, e radialista, que manteve por muitos anos o programa “Cantos do sul da terra”.

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