Ensaio

Com as próprias mãos?

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Com as próprias mãos?

Depois da descoberta de 208 trabalhadores vivendo em condições de trabalho análogas à da escravidão em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, surgiu a crítica pertinente ao slogan “fizemos nossa fortuna com nosso trabalho” que os descendentes de italianos propagam. 

A cultura da imigração (eu mesma cresci imersa nela) fomentou duas percepções bem problemáticas. A primeira é a de que os imigrantes vinham para o Brasil sem nenhum recurso. A segunda foi a de que tudo que os imigrantes conquistaram era fruto de seu próprio trabalho.

Mas vamos por partes. Quero começar explicando por que é falsa a narrativa que os imigrantes vieram para a Serra Gaúcha (e para outros lugares do Brasil onde recebiam ou compravam terras) sem recursos. Na Itália, a grande maioria desses camponeses era meeiro, ou seja, trabalhava na terra de outros e entregava boa parte da produção para o dono da terra como pagamento pelo uso da mesma. Isso porque o valor da terra e as relações de posse que remetiam ainda aos títulos feudais na Itália impossibilitavam a um camponês comprar terras lá. 

Já no Brasil, durante o período da imigração, a terra estava disponível. Primeiro, por um breve período, ofertada pelo Estado, depois, vendida em condições infinitamente melhores do que na Itália. O recurso que os imigrantes tinham não era grande, mas muitas vezes era suficiente para iniciar o pagamento da terra.

Além disso, importante dizer que ninguém imigrava no escuro. Apesar de circular muita propaganda sobre a “Cucagna” (a forma de se referir à riqueza entre aqueles que migravam às Américas), a grande maioria dos imigrantes vinha atrás de parentes que estavam estabelecidos nas colônias, com arranjos para o primeiro período.

Eram redes de contatos entre imigrantes e quem ficou na Itália que seguiam alimentando o fluxo migratório. As pesquisas demonstram que, muito mais do que fugitivos da fome, os imigrantes eram pessoas que vinham com planos e estratégias para melhorar suas vidas.

A falsa impressão de que não tinham nenhum recurso vem do contraste com a atenção recebida do Estado em centros já estabelecidos como Porto Alegre ou mesmo São Leopoldo, centro da primeira zona de imigração alemã, estabelecida quase meio século antes, em 1824. Aquela região, aliás, se encontrava integrada à capital depois de um processo muito similar, em que os colonos desenvolveram a cidade e depois, os enriquecidos foram para a capital.

A amplificação dessa percepção de abandono dos colonos ignora que isso acontecia em uma série de outros lugares também. E que, ainda assim, estes imigrantes recebiam muito mais que setores inteiros da população.

Chegamos então ao segundo ponto: nem tudo que os imigrantes conquistaram foi fruto exclusivo do seu trabalho. Já falei do acesso à terra facilitado em relação ao acesso que eles (não) tinham na Itália. Mas e no Brasil, como era o acesso à terra?

Pessoas livres e pobres, geralmente negros e mestiços, chamados caboclos, passaram a ser sistematicamente expulsos da terra nas regiões em que se abriram as colônias, para que essas mesmas terras fossem vendidas pros colonos italianos (e de outras origens). Por quê?

Desde a Lei de Terras de 1850 era preciso ter títulos para comprovar a posse da terra. Esses homens livres pobres não tinham as relações pessoais e sociais  que possibilitavam obter esses títulos, mesmo que tivessem direito a eles. Aí, aparecia alguém com um título vencido, ou com poder para pedir um novo título de terra, e quase sempre a questão era levada aos tribunais. Essas pessoas eram os “empreendedores”, que abriram as colônias em associação com colonos que podiam atrair novos e velhos imigrantes. 

Depois de um tempo, ocorreu um processo de migração dentro das colônias, em busca de mais terras ou de terras mais baratas (nem todo mundo se dá bem na sua estratégia de migração). Então, temos de entender que os imigrantes chegaram tendo acesso a terras, que os caboclos não tinham, e seus descendentes vão continuar a ter.

Muito pior era o caso dos indígenas, que acabaram deslocados para as áreas que os colonos não queriam, como encostas e banhados. O aldeamento submetido ao Estado era a única alternativa, já que não podiam mais fazer extrativismo e foram perdendo suas fontes de caça. 

O Campo dos Bugres virou colônia e hoje é Caxias do Sul. Na cidade industrial, quase 150 anos depois, nem sinal dos Kaingang que andavam pela região. Ou seja, para os colonos terem acesso à terra, indígenas, mestiços (os caboclos) e negros (ainda escravizados) não podiam ter. Isso não é depender do seu trabalho.

Por fim, quero lembrar que tudo isso se encaixa numa narrativa do homem dominando a natureza. O colono é o cara que chega num mundo selvagem e o transforma na civilização. Hoje, a gente sabe o que isso significa: o fim da Mata Atlântica na Serra; a criação de grandes indústrias etc.

No histórico dessas grandes indústrias, trabalho infantil e segregação social estão inclusas. Sim, essas são sociedades fundadas na exploração, onde a ética do capitalismo não foi nada civilizada. Está na hora de rever a narrativa que constitui essa identidade.

PS: Gostaria claro também de falar das pessoas que foram e são resistência nestes lugares, porque elas existem e não merecem apagamento. Mas fica para o próximo texto. 


Carla Menegat – Docente do Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul) e doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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