Ensaio

Corpo: movimento & liberdade

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Corpo: movimento & liberdade Kandisnky, "Dance Curves", 1926

Esse texto é uma reverência ao corpo, sua vivacidade, seus desdobramentos e a liberdade intrínseca que emerge quando somos capazes de reconhecê-lo enquanto aquilo que é: impulso por liberdade e por movimento.

Para começar esse texto é necessário, antes de tudo, resgatar o corpo do lugar subjugado ao qual foi submetido: vivemos nossos corpos, dia após dia – toda a nossa experiência no mundo acontece atravessada nele, e, ainda assim, o corpo continua sendo amarrado à ideia de um mero instrumento, uma espécie de envelope da alma.

Essa instrumentalização fez do corpo um pedaço de algo solto – repartido e compartimentalizado pela medicina, controlado pelo estado e dominado à força por aqueles que dizem que as paixões que acometem o corpo são um perigo para o equilíbrio da mente: desprezadores do corpo que tentam, a todo custo, subordiná-lo à mente e à razão.

Há que assumir o corpo enquanto um algo vivo, e não um mero instrumento subalterno à mente. Existe um impulso de vida no corpo que está muito além do que a mente diz sobre ele. O coração pulsa, o diafragma se contrai para que os pulmões se encham, milhares de células se dividem e hormônios são liberados, o tempo todo, numa sinfonia complexa e harmoniosa. É silenciar por alguns segundos para perceber como existe toda uma inteligência que reside no corpo e que não precisa de comandos racionais para se expressar. O corpo simplesmente sabe o que fazer e busca, a cada segundo, maneiras de se reorganizar.

É comum que as vontades do corpo nos surpreendam, porque, ainda que a mente possa ser capaz de dar certos comandos a ele, ele também reverbera seus afetos na mente. E se nos propomos a escutar, podemos colher esses sinais que o corpo apresenta e que se revelam na matéria – seja enquanto posturas e formas corporais que repetimos e que vão se enrijecendo, seja enquanto sensações que o corpo expressa: dor, prazer, calafrio.

Quando isso acontece, nosso impulso é levar para a razão. Nos debatemos para tentar encontrar sentidos, porque é da nossa natureza, enquanto seres inseridos na linguagem, querer dar sentido às coisas – e é bem verdade que tudo o que nos compõe deve ser, em alguma instância, passível de conhecimento – mas fomos ensinados a sempre buscar o sentido a partir da razão, e o que a experiência ensina é que, se contamos somente com a razão, o corpo escapa.

O que quero dizer é que existe um espectro de cura que só se faz possível através do corpo, por si mesmo, em uma instância que é livre da mente. E, ainda que cura seja uma palavra esgarçada pelas terapias e pelo mercado do bem-estar, opto por usá-la, buscando não uma ideia de cura que procura apagar o sintoma, mas sim que está em busca de experienciar para liberar. Uma cura que não está na palavra, muito menos na razão, mas impressa nos ossos, olhos, respiração. Uma cura que acontece no movimento e na conexão das partes que foram compelidas à separação. Cura enquanto capacidade de agir: quanto mais um corpo é capaz de se movimentar, maior a sua capacidade de ser afetado. E quanto maior a capacidade de um corpo de ser afetado, maior a sua capacidade de agir.

Existe uma potencialidade, um vir-a-ser que só se faz possível num corpo vivo. E um corpo vivo pressupõe movimento, simplesmente porque é da natureza da matéria o dinamismo.

O movimento é necessário para que essa vitalidade intrínseca à matéria se revele e para que algo se transforme. É necessário permitir que o corpo se expresse livremente, para que esse impulso de vida – algo que as filosofias orientais chamarão prāna, chi, qi – possa circular livre e espontaneamente.

A complexidade de um movimento está na sua capacidade de gerar circulação, conexão e transformação.

Por conta dessa potencialidade e vivacidade tão necessárias à matéria, é um equívoco resumir o corpo a mero templo da alma – essa alma que se pretende transcendente e que pouco se relaciona com o mundo material, com a expressividade ou com os afetos.

Deixo a ideia de uma alma intocada e sem poder de volição aos desprezadores da matéria. E assim posso honrar uma alma que é, ela mesma, também corpo, que pulsa movimento e conexão, com a certeza de que toda experiência se dá através de um corpo vivo, atravessada nele. Esse corpo-alma que é pura dinâmica expressiva e criativa.

Templo não se move, templo é um pedaço de construção que perece com o tempo e onde tudo o que há de divino e espiritual da existência fica resguardado dentro, entre quatro paredes.

Em vez de templo, defendo um corpo floresta, um corpo que pulsa inteligência e que conhece os caminhos para se reconstruir sempre que necessário. Um corpo que é feito de comunicação e produção. Assim como as raízes mais profundas de uma floresta se comunicam, por debaixo do solo, organizando-se em uma complexa teia de fungos e plantas, invisível aos olhos – assim também se comunica o corpo, em todas as suas camadas e em todas as direções, permitindo que, de si, aflore vida.

E assim, como é impossível dizer quantas árvores isoladas fazem a extensão de uma floresta, quantas plantas, quantos fungos, eu pergunto: quantas partes isoladas de um corpo fariam uma existência?

É necessário assumir a vivacidade e a potencialidade da matéria e declarar-se um corpo livre e vivo. Partir da valorização dos sentidos e da materialidade da alma para assumir a existência de um corpo com capacidade, por si, de encontrar caminhos para a liberdade. Não uma liberdade que busca transcender a matéria, a partir de um distanciamento do mundo, mas sim uma liberdade que se declara livre na própria existência, na experiência, na manifestação. Assumir o corpo enquanto a própria vida, desdobrando-se a partir de si mesma. Assumir a alma enquanto um corpo que se expressa e que, ao se expressar, escancara o poético, o divino e o extraordinário de cada ser.


Joana Selau é psicóloga formada pela UFRGS e praticante de yoga desde 2005. é professora de yoga, meditação e respiração, compartilhando técnica e filosofia a partir de uma visão ética, experiencial, amorosa e não dogmática do yoga.

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