Ensaio

Crimes perfeitos

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Crimes perfeitos Filme "Dois estranhos". Foto: Netflix

A semana pós-carnaval de 2024 nos ressacou com dois casos que, de certa forma, inverteram os papéis vítima/agressor e que acredito que podem ser chamados de “crimes perfeitos”. 

No sábado, dia 17 de fevereiro, em Porto Alegre, o motoboy negro, Everton, foi atacado por um senhor branco na rua, em frente ao seu posto de trabalho, onde esperava as chamadas para as entregas. Com a chegada da Brigada Militar (BM) no local, assim que Everton demonstrou sua indignação por ter sido atingido com um estilete, abrindo os braços e dizendo que a vítima era ele, os policiais iniciaram uma abordagem truculenta, sendo ele agarrado pela camiseta, empurrado contra a parede, além de ter sido algemado e colocado a força no camburão da viatura. 

Já o outro (branco) envolvido na ocorrência pode subir tranquilamente até seu apartamento sem ser coagido pelos brigadianos, podendo ir e vir sem nenhum receio de que seria violentado, sendo também “algemado” (só o fizeram para que não ficasse tão evidente a abordagem racista que já tinha ocorrido) e conduzido de forma branda ao banco de trás de um outro carro. Não estivesse com as mãos presas, poderíamos dizer que estava pegando uma carona com os amigos, tamanha a cordialidade dos policiais, abrindo a porta gentilmente para que entrasse. 

Não sou contra esse tipo de tratamento educado, que recebeu o senhor branco dos policiais, mas a pergunta que fica, analisando a conduta dos agentes do Estado, considerada como uma “abordagem técnica”, defendendo a não existência de racismo é: por quê Everton não foi tratado da mesma maneira? 

O ditado “NEGRO PARADO É SUSPEITO, NEGRO CORRENDO É LADRÃO”, neste caso, pode ser ampliado: “E QUANDO TOMA ESTILETADA DE BRANCO É INDICIADO”. Sim, o resultado da sindicância da BM denunciou ambos por terem cometido lesões corporais leves, sendo que Everton ainda foi indiciado por desobediência. 

Apesar das imagens da abordagem equivocada (para dizer o mínimo) terem rodado o Brasil e da pauta ter repercutido nas redes sociais, onde inúmeras pessoas, ministros de Estado, artistas, jornalistas manifestaram repúdio à conduta truculenta da BM, outras tantas silenciaram. É indignante e, enquanto negro, dói perceber que muitos não tomaram posição ou duvidaram das próprias imagens. É nesse sentido que venho reforçando o quanto o racismo é um “crime perfeito”, pois mesmo com provas gravadas e relato das testemunhas não há o convencimento da maioria da população de que aquilo foi uma abordagem racista.   

Lembro muito bem do que meu pai dizia, antes de sairmos de casa, ainda na minha infância, entre 8 e 9 anos, quando comecei a sair junto com o meu irmão mais velho: “levem os documentos, não corram nas ruas, se forem abordados pela polícia, nada de movimentos bruscos, só respondam sim senhor ou não senhor, e, o principal, meninos, voltem para casa”. O caso do motoboy Everton é emblemático e, infelizmente, não é um episódio isolado e sim cotidiano na vida da população negra. 

Quando digo que o Mississipi Gaudério segue em chamas, sou chamado de exagerado e, muitas vezes, escuto: te muda daqui! Vai embora pra Cuba! Só que mesmo que eu me mude continuarei sendo preto e seguirei denunciando a covardia, a truculência e a violência que o Estado comete, diariamente, contra a população negra deste país, sendo que aqui no sul do Brasil, há requintes de crueldade na conduta de quem deveria nos proteger.

Negros têm 4,5 vezes mais chances de sofrerem abordagem policial no Brasil, segundo pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD – cujos os membros são advogados criminais) e pela Data Labe (organização social com sede nos conjuntos de favelas da Maré/RJ). O estudo também revela que 89% das pessoas negras que passaram por abordagem policial relataram terem sofrido algum tipo de violência física, verbal ou psicológica.

As argumentações de que Everton se comportou de forma desobediente com a BM, de que é arruaceiro e que jogou pedras no homem branco, pipocaram entre os defensores da moral e dos bons costumes e que, por isso, não houve racismo, mas sim uma conduta justa e normal da BM. É sempre o mesmo copia e cola, que já está pronto para isentar o Estado das suas incongruências. Há um padrão de comportamento da polícia como mostram as pesquisas, a sensação que tenho é que enquanto não aniquilarem a população preta, não irão sossegar.

Sou pai de duas crianças negras, que já sabem como devem se portar quando se depararem com algum policial e ao ouvirem o barulho da sirene já ficam de “orelha em pé”. Tenho medo da polícia e não me envergonho em dizer isso, mas esse é o sentimento que tenho quando percebo algum deles passando por mim na rua ou quando estou dirigindo meu carro e alguma viatura está se aproximando. 

O curta metragem que ganhou o Oscar de 2021, Dois Estranhos, é pedagógico, pois apesar do filme mostrar diferentes caminhos tomados num mesmo dia pelo protagonista negro, ocorre sempre o mesmo desfecho: o seu assassinato por um policial em uma abordagem na rua. A Escola de Samba de São Paulo Vai Vai também deu luz a esse tema, homenageando o Hip Hop, com a participação dos Racionais, fazendo alusão ao álbum Sobrevivendo no Inferno lançado em 1997. Além disso, a escola trouxe em uma de suas alas uma crítica contundente contra a conduta coercitiva e violenta da polícia. A arte imita a vida e uma de suas razões de ser e estar no mundo é denunciar as explorações e as injustiças cometidas por aqueles que detém o poder. 

Na sequência do caso do Everton, também tivemos a condenação do jogador de futebol, Daniel Alves, no dia 22 de fevereiro, a 4 anos e meio de prisão pelo estupro de uma mulher de 23 anos no banheiro de uma boate na Espanha. Que bom que o condenaram pela violência sexual que cometeu, por outro lado, a pena foi muito branda, considerando a gravidade do crime. E os 150 mil euros que serão entregues à vítima não apagam o seu trauma. 

É impressionante como a voz das mulheres não é levada em consideração em casos como esse, pois a jovem vítima desse crime bárbaro foi inúmeras vezes questionada. De imediato seu relato foi criticado como aquela que quer “ganhar vantagem”, já que o agressor é rico, além disso, não se respeitou seu pedido de anonimato, sendo ela exposta e violentada novamente durante o processo. Tanto que no dia da sentença, após o resultado, ela chorou e desabafou três vezes: acreditaram em mim, acreditaram em mim, acreditaram em mim! Sim, felizmente a justiça considerou as evidências, contudo, muitas pessoas ainda questionam se foi estupro mesmo. Postei sobre o caso nas minhas redes e recebi comentários inbox me questionando se realmente eu tinha achado que foi estupro. 

É nessa direção que considero tanto o crime de racismo, como o de estupro como “crimes perfeitos”, pois quem sofreu a violência é sempre questionado, as atitudes dos agressores relativizadas, sendo necessárias não apenas uma ou duas provas, mas um arsenal de defesa para que a vítima não se torne aquela que provocou o crime. Ou seja, se culpabiliza a vítima e o agressor sai, muitas vezes, como o injustiçado.

Temos que refletir sobre muitos outros aspectos que envolvem o universo do futebol. A masculinidade tóxica, violenta e machista, que envolve o esporte mais popular do mundo, precisa ser trazida para o centro do campo. Homens que, desde meninos, são ensinados e estimulados a ganhar de qualquer jeito, brigar para mostrar que são machões, xingar o árbitro para agradar o torcedor, entrar em campo com cara de mal e humilhar seu adversário sempre que possível. Há uma romantização em torno do futebol brasileiro, onde a cada menino “talentoso” que surge aos 10, 11 ou 12 anos, já o projetam como o próximo Pelé. É muita pressão! E quando essa criança se transforma em um grande jogador, todos querem ser o “pai” desse menino, pois sabem dos lucros que virão com a carreira promissora. 

São muitos os meninos que renegam seus passados pobres, por vezes miseráveis, e quando ascendem são cooptados pelo sistema, se colocando em um lugar que nunca foi deles, o das elites! Não à toa muitos jogadores de futebol apoiaram e ainda apoiam o Bolsonaro, esse mesmo que disse na cara da então deputada Maria do Rosário, nos corredores do congresso nacional, que ela não merecia ser estuprada, pois era feia e não fazia o seu tipo. O ex-presidente também proferiu, em palestra, que quilombolas pesavam mais de 7 arrobas e que achava que nem procriar podiam mais. 

Apitei jogos de vários guris nas categorias de base e conversava e via nos olhos de cada um o sonho de mudar de vida, comprar uma casa para mãe, comprar um carro, andar com roupas de marcas. Meninos que, anos mais tarde, em 2018, descobri, perplexo, que estavam fazendo arminha com a mão em postagens nas redes sociais, ou seja, fazendo campanha e compactuando com as condutas e discursos do pior e mais perverso presidente que o Brasil já teve. Tudo para agradar seus empresários e se sentirem pertencentes a um mundo que de fato nunca será deles. Alienação pura!

Dizem que o caráter vem de casa, e quem não tem casa? E quem é entregue aos 11 ou 12 anos para um clube de futebol, por três refeições diárias? Ou para um grupo de empresários? Quem educa e serve de exemplo para esses meninos? Vocês já pararam para pensar que meninos brancos de classe média alta e burgueses são raros no meio do futebol? O Daniel Alves é mais um dos tantos filhos da pobreza, que só teve a chance de vencer na vida através do futebol, pois esses homens que um dia foram meninos, cansaram de ouvir: “não precisa estudar; jogador bom não pensa com a cabeça e sim com os pés; negro de luvas serve para ser pedreiro e não goleiro”; e outras tantas pérolas, que são ditas nos vestiários e concentrações por dirigentes e expoentes da bola. 

As provas irrefutáveis de que Daniel cometeu o crime de estupro e sua condenação representam mais um gol contra dos tantos que estamos levando nos últimos anos. Fazer uma analogia aos 7 x1 é muito pouco perto do abismo moral e ético que se encontra o futebol brasileiro. Há quem culpe a mulher que foi estuprada, mesmo com todas as evidências e filmagens da boate espanhola. Mesmo com as mudanças de versões do agressor ao longo das investigações. Quando iremos respeitar que o NÃO é NÃO? Ah, mas ele é rico e pode ter qualquer mulher! Não pode, não. Para quem é pai de uma menina, se eu não me colocar no lugar dessa mulher que foi vítima, o que irei ensinar a minha filha? Quem são as pessoas que estão educando esses meninos no futebol Brasileiro? Será que os cursos realizados para que treinadores e preparadores físicos tenham as licenças para atuarem no futebol abordam questões em torno do machismo, do racismo, falam a respeito da homofobia, do feminicídio? Já é mais do que provado que dinheiro não significa sinônimo de educação ou bondade.

O processo de elitização que foi imposto ao futebol nos últimos anos é uma tentativa de estratificação social para validar uma burguesia, que atua e fatura muito através desses corpos que serão negociados a qualquer momento. São corpos/mercadoria, como também eram os negros. Tenho dito que podemos pensar o futebol como uma representação contemporânea da escravidão, onde corpos de pessoas pretas e de brancos pobres servem como moeda de troca para encher os bolsos dos tataranetos dos senhores escravagistas. 

Não há nenhum tipo de incentivo à escolarização, educação e formação social e crítica desses atletas. A goleada que sofremos na Copa de 2014, aqui no Brasil, foi só um ensaio da goleada que estamos sofrendo diariamente. E se fosse a tua mãe, ou a tua irmã, ou a tua esposa, ou a tua filha que chegassem em casa relatando terem sido estupradas? O que te faz duvidar de uma mulher que se expõe para denunciar um crime tão abominável? É mais fácil acreditar no homem rico, famoso, poderoso, que alega estar alterado em virtude do álcool.

É preciso reconhecer que, nós homens, fomos criados de forma a agir com violência, crescemos em ambientes racistas, machistas, homofóbicos para sermos predadores, para sermos garanhões, para sermos comedores, desde que seja a irmã do outro, porque a minha eu devo proteger. É preocupante que ídolos do futebol mundial, que influenciam meninos que estão em formação de caráter tenham um comportamento tão vil, passando a ideia de que podem tudo por serem ricos.

O machismo, que mata e abusa de mulheres, bem como a violência e o assassinato cometido por agentes policiais contra corpos negros são apenas algumas das consequências do sistema patriarcal e do racismo institucional, que perduram até os dias de hoje na sociedade e estão presentes na maioria das organizações, sejam elas privadas ou públicas. 


Márcio Chagas da Silva, 47 anos. Professor de Educação Física, ex-árbitro de futebol Aspirante FIFA, melhor árbitro Campeonato Gaúcho 2008/2011/2012/2013/2014, speaker TEDX Unisinos 2019, pai do Miguel e da Joana, comentarista de arbitragem RBS 2014/2020, canal TNT Sports 2021, assessor deputada Laura Sito, militante antirracista ✊🏿. Projetos @utopia_possivel.

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