Ensaio

Depois que baixarem as águas

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Depois que baixarem as águas Roca Sales, 16 de maio de 2024. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Enquanto vivemos o luto de mais uma tragédia causada por fatores climáticos no sul do Brasil, precisamos refletir coletivamente – mais uma vez – sobre as lições aprendidas. É evidente que as causas imediatas de enchentes e deslizamentos de terra com impactos sobre vidas humanas e ativos econômicos é relativamente conhecida. Ausência de manejo hídrico para conter a elevação abrupta dos níveis dos rios, solo impermeabilizado pelo crescimento urbano desordenado, desmatamento de encostas e destruição das matas ciliares, assoreamento de rios e córregos e mais estruturalmente as alterações climáticas com a recorrência dos chamados eventos climáticos extremos. Tudo isso é conhecido pelas ciências, da hidrologia ao urbanismo.

Mas, por que os danos são cada vez maiores, físicos e humanos? Por que parecemos cada vez mais vulneráveis à acontecimentos imprevistos? A resposta não está nos desígnios divinos, mas na destruição da capacidade de planejamento público e implementação de estratégias de desenvolvimento de longo prazo.

Para que o Estado desenvolva capacidades de gestão estratégica o primeiro quesito é manter e melhorar seus ativos de inteligência, produção de conhecimento e coordenação entre os múltiplos atores públicos e privados. O que fizemos no Brasil e no Rio Grande do Sul nos últimos tempos? Exatamente o contrário.

O Estado gaúcho vem sistematicamente aniquilando sua capacidade de inteligência coletiva (pública). Só no período do Governador Sartori (MDB), o legislativo estadual extinguiu a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional, a Metroplan, que gerenciava um território equivalente a 50% da população gaúcha. No mesmo período foram extintas a Fundação de Economia e Estatística, geradora de projetos de desenvolvimento para o estado, a Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec) e a Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), todas extintas em 2017.

O governo de Porto Alegre também deu sua contribuição, extinguindo o Departamento de Esgoto Pluvial (DEP), a única organização pública entre todas as capitais, destinada especificamente a planejar, implantar e conservar a rede de drenagem urbana da cidade, incluindo o sistema de proteção contra as cheias que faliu dramaticamente nos últimos dias. O Plano Diretor de Drenagem Urbana, elaborado em 2005, como quase todos os planos no setor público, é uma peça tecnicamente bem-feita, nas suas 167 páginas. Porém, sem viabilidade institucional, estratégia, desenho de cenários e sobretudo patrocínio de empreendedores políticos, se tornou mais um exercício de erudição irrelevante e inútil.

A causa-raiz da nossa incapacidade institucional em lidar com os eventos climáticos extremos está na destruição histórica do planejamento público, desde os anos 1990. A inteligência do estado brasileiro vem sendo destruída pela crença quase religiosa de um liberalismo tosco e atávico que confia cegamente nas forças anárquicas do mercado. Esse ideário se tornou parte de uma cultura hegemônica na gestão pública nacional, nos incapacitando para pensar e projetar o futuro, desenhar planos criativamente e reagir com prontidão diante das crises.

É sabido que as tragédias mudam as preferências coletivas. Oxalá não tenhamos que assistir mais mortes e destruição de riqueza privada e coletiva, para que o país retome sua tradição de planejamento governamental. Uma capacidade estatal que precisa ser reinventada, renovada e redesenhada. Mais dinâmico, mais participativo, com mais intensidade em gestão e mais propósito socialmente engajadores e mobilizadores. Precisamos redefinir legitimamente nossas escolhas coletivas. Só o planejamento governamental democrático – estruturado, sistemático e inteligente – pode fazer isso.


Jackson De Toni é Doutor em Ciência Política e autor do livro O planejamento estratégico governamental: reflexões metodológicas e implicações na gestão pública, Editora Intersaberes, 2016, e ex-Diretor Geral da Secretaria de Planejamento do Rio Grande do Sul (1999-2003). Email: [email protected]

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