Ensaio

Dinah Silveira de Queiroz: o fim de uma história que não se encerra

Change Size Text
Dinah Silveira de Queiroz: o fim de uma história que não se encerra Dinah Silveira de Queiroz e Rachel de Queiroz durante a cerimônia de posse na ABL de Dinah. Revista Manchete, Gil Pinheiro (1981)

Mira, Montserrat, si no hablamos nosotras de
nosotras, ¿quién lo va a hacer? 
Antonina Rodrigo

Georgina Albuquerque, na pintura Sessão do Conselho de Estado, empreende, conforme análise de Ana Paula Simioni, uma insólita combinação, ao empregar, além de um novo tipo de herói – a mulher –, cores e pinceladas impressionistas na composição de uma tela em que o enquadramento e a ampla dimensão estão em acordo com a pintura histórica convencional, gênero de caráter mais conservador. Dinah Silveira de Queiroz, de maneira análoga, constrói em Margarida La Rocque, em A muralha e em Os invasores narrativas em que coexistem características de modelos tradicionais de romance histórico com outras que subvertem os princípios desses mesmos modelos. Na série de ensaios que hoje é aqui encerrada, foi apresentada uma dessas características: a relevância dada às mulheres na obra de Dinah. 

Desde Margarida La Rocque, em que há uma personagem principal que também é a narradora, o que se pode notar é que as mulheres são os indivíduos que movem as ações. Em A muralha e em Os invasores, essas personagens surgem em número ainda mais expressivo; no primeiro, protagonizado pela portuguesa Cristina, a ficção permite recuperar aquelas mulheres que, embora não célebres, tiveram atuação fundamental no Brasil colônia, seja em acontecimentos públicos, seja nos privados – majoritariamente não contemplados pelos discursos históricos tradicionais. Em Os invasores, ambientado temporalmente pouco depois de A muralha, se tem não só a criação de uma narrativa para a história não contada das 60 mulheres abrigadas em um trapiche durante uma invasão francesa ao Rio de Janeiro, mas também a possibilidade de ser uma dessas mulheres a resposta para um crime nunca solucionado. 

Assim, de diferentes maneiras, a elaboração das tramas envolvendo Margarida,  Cristina, Mãe Cândida, Daniela, Inês, entre várias outras personagens, permite trazer as mulheres para o espaço da história. Com isso, também são registradas as violências e opressões a que elas eram submetidas e, na mesma medida ou mesmo em maior grandeza, seu caráter transgressor, suas vozes, sua presença e sua importância para os eventos históricos que se sucediam. Essa prática, segundo aponta Diana Wallace em The Woman’s Historical Novel (2005), é um recurso característico de parte da produção das ficções históricas de autoria feminina; segundo a estudiosa, o uso de personagens ficcionais em um cenário histórico factual tem como finalidade empreender uma recuperação imaginária ou a recriação da história perdida ou não registrada das mulheres.

Uma metáfora desse apagamento pode ser lida na epígrafe de A muralha: “Tudo o que acontece eu ponho neste livro. E se não acontece, estando no livro, é o mesmo que ter acontecido”. A frase se trata de uma fala do patriarca Dom Braz, que surge também mais adiante no romance, e faz referência a uma espécie de diário em que a personagem registra os ocorridos de seu cotidiano, sejam eles reais ou imaginados. Assim, na arbitrariedade dessas anotações pode ser encontrada uma alusão ao controle masculino exercido na escrita da história, incluindo eventuais distorções, acréscimos e exclusões, principalmente naquilo que diz respeito à atuação feminina na narrativa histórica. Em A muralha assim como em Margarida La Rocque e Os invasores, isso é subvertido por meio da escrita ficcional, fazendo com que a inclusão de mulheres seja um meio de questionamento da história e de apontar suas faltas, sua parcialidade, seus apagamentos, sua subjetividade, suas diferentes possibilidades de narrativa, suas verdades plurais.

A relevância dada às personagens mulheres bem como a sua inserção em um passado histórico realizada na ficção de Dinah acontece, é importante sublinhar, não sem falhas. Uma das principais é o fato de que as personagens femininas centrais, ou mesmo grande parte daquelas de papel secundário, são brancas e favorecidas social e economicamente. Apesar disso, é fato que a obra de Dinah está em uma posição de pioneirismo ao colocar as mulheres no centro da ficção histórica, iniciando um caminho que ao longo das décadas viria a ser ocupado por tantas outras grandes escritoras brasileiras; exemplos disso são Ana Miranda e Ana Maria Gonçalves – que recentemente teve o seu Um defeito de cor levado à Sapucaí como samba enredo pela Portela, colocando o já bem-sucedido livro no topo das listas de mais vendidos.

Como epígrafe para este ensaio, tomei emprestada a mesma epígrafe utilizada por Zahidé Lupinacci Muzart em sua introdução a Escritoras brasileiras do século XIX. Para essa obra, a saudosa pesquisadora coordenou um trabalho monumental em que dezenas de autoras foram registradas, contrariando a crença de que não havia escrita de mulheres antes do século XX. A convicção na importância do resgate de escritoras negligenciadas pela história da literatura foi o que levou o meu encontro com Dinah Silveira de Queiroz. A autora, no início de um breve texto escrito em 1971, questionou qual destino teria um escritor daquela época no século XXI. O aceno de uma possível resposta pode ser visto nas reedições de seus livros que vêm sendo publicadas e nos novos estudos a eles dedicados*. 

Fac-símile de uma página de Dinah Silveira de Queiroz . Seleta (1974)

*Se destacam principalmente aqueles voltados à sua ficção científica, como o artigo Na máquina do tempo de papel: Comba Malina e a importância da ficção científica de Dinah Silveira de Queiroz (2020), de Pilar Lago e Lousa e Ana Rüsche, e o livro A ficção científica de Dinah Silveira de Queiroz: leituras e perspectivas teóricas (2022), organizado por Marlova Soares Mello e  Rita Lenira de Freitas Bittencourt. 


Ana Cristina Steffen é natural de Porto Alegre. É Doutora em Letras – Teoria da Literatura (PUCRS, 2023). Sua atuação como pesquisadora está voltada principalmente às áreas da literatura brasileira, teoria e crítica feministas e à obra da escritora Dinah Silveira de Queiroz. Atualmente é servidora pública da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.