Ensaio

Em busca dos jardins de nossos filhos

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Em busca dos jardins de nossos filhos Foto: Mabel Amber

No ensaio “Em busca dos jardins de nossas mães”, a afro-americana Alice Walker questiona sobre os sonhos de nossas ancestrais. O que desejavam nossas mães, avós e bisavós? Acaso desejariam escrever, cantar ou tocar um instrumento? Minha mãe, por exemplo, uma trabalhadora rural que não foi alfabetizada, timidamente me confessou certa vez que sonhava ser médica. 

Walker escreve que no Smithsonian Institution, em Washington D. C., está uma colcha que através de trapos singelos retrata a crucificação. A peça é considerada rara e de preço imensurável. A nota explicando a autoria diz que foi confeccionada por uma “mulher negra anônima, no Alabama, cem anos atrás”. Essa mulher negra anônima poderia ser uma de minhas ancestrais. Mamãe, inclusive, também fazia tapetes e colchas de retalhos. 

No ensaio, Walker dialoga com Um teto todo seu, de Virginia Woolf, ensaio em que a britânica questiona a invisibilidade e o apagamento das mulheres escritoras do século XVIII, que não puderam expressar suas genialidades. Walker avança em relação a Woolf e pergunta: e as mulheres escravizadas, que sequer eram consideradas humanas?

No texto, a afro-americana cita Roberta Flack, o que me fez passar o domingo ouvindo, em loop, Killing me softly. A voz e o piano de Flack me levaram para a infância em Baldim, onde formei meu gosto musical ouvindo AM no rádio de pilha. Nos anos de 1970 cresci ouvindo a black music americana, e nos anos de 1980, já morando em BH, ouvindo o Clube da Esquina

Roberta Flack, que ainda é viva, fez muito sucesso no mundo inteiro. Filha de músicos, aprendeu a tocar piano e a cantar na igreja protestante onde o pai era organista. A escritora norte-americana bell hooks, no livro Ensinando a transgredir, fala da qualidade da educação que recebia nas escolas negras no tempo da segregação racial nos EUA. hooks diz que essa qualidade caiu muito quando as escolas se tornaram mistas, porque os professores negros tinham a preocupação de proporcionar a melhor formação para seus descendentes e exigiam muito deles. 

A geração do meu filho, que nasceu com o advento da internet e das redes sociais, forjou seu gosto musical no YouTube e mais recentemente no Spotify. MCs, rappers e trappers, com milhões, às vezes bilhões, de visualizações, que nunca apareceram na TV. 

Foi por causa do meu filho, inclusive, que parei para ouvir Racionais quando por volta dos 8 anos de idade ele chegou em casa cantando Negro Drama. Ali eu me encantei com as crônicas sociais dos quatro pretos da zona sul de SP. Está tudo lá, todas as minhas aulas de Sociologia. 

Mas não é só Rap que meu filho curte. Como o pai é músico, cresceu tendo acesso a muita diversidade: de Pena Branca e Xavantinho, passando por James Brown, a Milton Nascimento. E como todo jovem de sua geração, também ouve funk. Eu também ouço, não porque gosto, mas porque minha vizinha me obriga. E mesmo não sendo a música da minha predileção, sempre discuti o gênero musical com os meus alunos, seja os de ensino médio, seja os da licenciatura. Lemos dissertações e teses que analisam os proibidões e até os funk putaria. São muitas as pesquisas realizadas.

Eu penso que, numa discussão se o funk atual é bom ou não, se as letras são pobres ou não, temos questões importantíssimas que vêm muito antes. O poeta Sérgio Vaz diz que só o fato de muitos desses jovens estarem fazendo música já é motivo para celebrarmos. Eles estão criando. MC Carol costuma dizer que as letras de putaria incomodam mais que crianças em situação de rua. Ela viveu em condições de vulnerabilidade extrema, antes de ganhar dinheiro e conseguir proporcionar dignidade para si e para os seus com suas letras de funk. Já viajou o mundo, inclusive. 

Meu filho teve sua fase de trapper. Com nossos parcos recursos montamos um estúdio improvisado aqui em casa. Foram muitas noites de sábado que passou trancado com os amigos em meio a beats baixados gratuitamente da internet e letras que falavam de lean, sprit, beck, malotes de dinheiro, bundas e sexo. Rapidamente, percebeu que não conseguiria o retorno financeiro tão sonhado e hoje é servente num almoxarifado de uma empreiteira de engenharia trabalhando dez horas por dia.

Eu fico pensando em mim, uma mulher do povo, mãe de filho, periférica, que ainda sonha com um teto todo seu e algumas libras, como reivindica Woolf. Também quero escrever ficção. Penso em Caroline Falero, atriz, diretora, produtora que ainda não consegue viver de sua arte. Penso no José Falero, que foi despertado de uma resignação que ainda o ronda porque a irmã o convenceu a ler, o arrastou para o teatro, lhe apresentou Bertold Brecht, e o romance Os Supridores está aí para confirmar o que acesso à cultura, a outras possibilidades, à política pública, é capaz de fazer na vida de jovens periféricos.

Na segunda-feira passada, cedinho, vi nos stories do meu filho a tristeza pela perda de um de seus ídolos que morreu no domingo, aos 23 anos. Eu nunca ouvi uma música do MC Kevin, mas sabia quem ele era porque era uma inspiração para meu filho. Essa geração nascida nos anos 2000 foi letrada nas redes sociais muito mais do que na escola. Esses meninos e meninas tretam, sonham e desejam através do twitter, do Instagram, do TikTok. São seduzidos por desejos de consumo e de corpos padronizados, por carros e motos, mansões e muito, muito dinheiro, malotes de dinheiro. A escola segue alheia a isso tudo.

Eu penso no talento e na criatividade do meu filho sendo embotada enquanto ele distribui equipamentos de proteção individual no almoxarifado improvisado em um contêiner nos arredores de Baldim, em plena pandemia.

Enquanto escrevo esse texto, ouço Roberta Flack e seu piano. Ainda reverberam em mim os questionamentos de Alice Walker sobre os jardins de nossas mães. Mas também questiono os jardins que estamos roubando da nossa juventude. A cada vinte e três minutos um jovem negro é morto nesse país. 

Há quarenta anos tive minha carteira de trabalho assinada como servente em uma escola. Em 2021, meu filho também teve sua carteira assinada como servente. Penso que antes de questionarmos as letras pobres de funk, precisamos refletir sobre o que temos ofertado aos nossos jovens. 

Faz pouco, completamos 133 anos de uma abolição que nunca se efetivou de fato. Durante cerca de 400 anos, jardins foram proibidos às nossas ancestrais. Em pleno século XXI continuam sendo proibidos aos nossos filhos.


Dalva Maria Soares – Antropóloga, autora de Para diminuir a febre de sentir (Venas Abiertas)

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