Ensaio

Entre a história e a lenda, algumas das mulheres de Dinah Silveira de Queiroz

Change Size Text
Entre a história e a lenda, algumas das mulheres de Dinah Silveira de Queiroz Jovita Alves Feitosa. Foto: Autor Desconhecido

No dia 12 de outubro de 1939, por volta das 17 horas, Dinah Silveira de Queiroz chegava à Casa Mappin, em São Paulo. A ocasião marcava o recebimento de uma homenagem devido ao sucesso de Floradas na serra, lançado mais cedo naquele mesmo ano. Então com 27 anos, Dinah foi surpreendida  pelo êxito de Floradas, que se esgotou em apenas 20 dias. O romance conta a história de um grupo de jovens que busca se recuperar da tuberculose em um sanatório em Campos do Jordão, e tem a personagem Elza como protagonista.

Desde a estreia com Floradas na serra até seu último livro publicado, Guida, caríssima Guida, grande parte da obra de Dinah tem seu centro em torno das personagens femininas. Nas produções em que a autora se aproximou da história, isso não foi diferente: não somente em romances como A muralha, mas em outras criações da autora, o foco é colocado sobre as mulheres, sejam elas personagens históricas ou não. É o caso da obra infantojuvenil A princesa dos escravos, em que é narrada a vida da Princesa Isabel, responsável pela assinatura da Lei Áurea. Outro exemplo é o conto “Jovita”, parte da coletânea As noites do Morro do Encanto, inspirado em Antônia Alves Feitosa – mais conhecida como Jovita. 

Segundo a obra Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte (2020) de José Murilo Carvalho, Jovita era natural do Ceará, e em 1865, aos 17 anos, se apresentou em roupas masculinas como voluntária para lutar na Guerra do Paraguai. Apesar de seu disfarce ter sido descoberto, ela foi aceita para o posto de segundo-sargento pelo presidente da província. Sua história ganhou grande repercussão na época, e por cerca de um mês ela transitou e foi homenageada em diferentes cidades. Por último, chegando ao Rio de Janeiro, Jovita teve negada a sua participação no combate. Os principais fatos envolvendo sua vida após esse momento carecem de maiores registros e ficam entre a história e o mito, o que, segundo aponta Carvalho, é uma particularidade compartilhada entre diferentes mulheres guerreiras da história universal. 

A protagonista de Margarida La Rocque: a ilha dos demônios (1949), segundo romance de Dinah, está do mesmo modo em uma posição entre a história e o mito. Nesse livro, a protagonista narra sua trajetória, desde o nascimento precedido de uma trágica profecia até o período em que foi abandonada em uma ilha habitada somente por animais e seres fantásticos. A narrativa se passa na França do século XVI e, conforme revela o prefácio da autora, “foi inspirado numa breve passagem da ‘cosmografia’ do padre André Thevet”. Nascido na França, André Thevet (1502-1592) foi um frade que serviu a diferentes reis de seu país atuando como cosmógrafo. Ele percorreu diversas localidades em todo o mundo, tendo passado inclusive pelo Brasil. Em La cosmographie universelle, Thevet registrou relatos sobre a África, Ásia, Europa e sobre as “novas terras” que então chegavam ao conhecimento dos europeus.

No romance de Dinah, a protagonista dirige seu relato a um padre que conhecia “as maravilhosas terras que ficam além dos mares”, em quem pode ser vista uma referência a Thevet. Mas a relação com o religioso francês vai bastante além disso: no trecho de La cosmographie que inspirou o romance, também é narrada a história de uma mulher francesa, Marguerite, que, durante sua participação em uma das expedições marítimas de seu país, foi abandonada em uma ilha deserta do que atualmente é território canadense, onde ela esteve em contato com manifestações sobrenaturais. 

A história contada por Thevet já tinha sido registrada em uma obra anterior a sua: a rainha francesa Marguerite de Navarre (1492-1549), em L’Heptamerón, também apresenta o suposto relato da mulher abandonada em uma ilha deserta. Esse mesmo episódio foi retomado ao longo dos séculos por um grupo numeroso de obras, tanto ficcionais quanto históricas – alguns exemplos são o texto dramático L’île de la demoiselle, de Anne Hébert, e um verbete dedicado a Marguerite de La Rocque que consta no Dictionary of Canadian Biography, das Universidades de Toronto e Laval. 

Apesar disso, até o presente momento a personagem que inspirou o romance de Dinah permanece em uma posição incerta entre a história e a lenda, visto que em sua maior parte as menções a Marguerite têm como referência os livros de Navarre – uma obra ficcional – e o de Thevet – um tipo de obra sobre o qual não há consenso quanto ao seu uso como fonte para a história. Se isso pode ser, por um lado, indício de que os acontecimentos envolvendo a mulher abandonada em uma ilha sejam pura invenção, por outro, pode também ser resultado da escassez de registros sobre mulheres.

É emblemática, nesse sentido, a opção feita por Dinah ao se apropriar do texto de Thevet: enquanto no texto do francês é ele próprio quem narra a história que ouviu de Marguerite, a autora reescreve o relato a partir da perspectiva de Margarida. Nessa atitude pode ser lida a marca da necessidade de dar voz própria à personagem como forma de tirá-la do silêncio a que ela e tantas outras mulheres foram relegadas na história. E esse silenciamento é ainda mais crítico quando se trata daquelas que não se encaixam nos padrões de comportamentos esperados. 

No caso de Margarida La Rocque, a heroína transgride os papéis tipicamente femininos* de uma Europa do século XVI (ou mesmo do Brasil do meio do século XX, quando o livro foi escrito): ela não se restringe a ocupar o espaço doméstico e ser devotada à família; ela não nutre aspirações em relação à maternidade; ela assume o risco de sair em uma perigosa viagem marítima; infeliz em seu casamento, ela inicia um relacionamento extraconjugal; após a morte das personagens com ela exiladas, ela sobrevive sozinha no ambiente hostil da ilha. 

Ao dar voz às transgressões de Margarida e à própria personagem, Dinah redunda em contestar o discurso histórico. A contestação, nesse caso, questiona sobre a história não narrada das mulheres, e viria a ser tema também de A muralha e Os invasores, romances que serão abordados no próximo ensaio desta série. 


*O “tipicamente feminino”, nesse caso, é definido exclusivamente pela forma como a personagem foi concebida: branca, cisgênero, heterossexual e em uma posição privilegiada social e economicamente. 


Natural de Porto Alegre, é Doutora em Letras – Teoria da Literatura (PUCRS, 2023). Sua atuação como pesquisadora está voltada principalmente às áreas da literatura brasileira, teoria e crítica feministas e à obra da escritora Dinah Silveira de Queiroz. Atualmente é servidora pública da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. 

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.