Ensaio

Festivais de pederastia: Os gays e a Ditadura no RS – III

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Festivais de pederastia: Os gays e a Ditadura no RS – III Boate Flower's

Semana passada escrevi sobre as travestis durante o período do Regime Militar e terminei discorrendo sobre o idiossincrático padre Ozy Fogaça. Hoje apresento um pot-pourri de situações não convencionais, a começar pelo estranhamento causado pela primeira casa gay do estado, quem sabe do Brasil, criada por Dirnei Messias. Com oito décadas de informações acumuladas, ele me contou alguma coisa sobre esse período. Entre os seis estabelecimentos que dirigiu, a primeira boate gay, com a Ditadura em plena vigência, foi a Flower’s (1971-1976), na rua Jayme Telles, 72. Antes disso, esse público se reunia em porões, que ele chamou de “clandestinos”, não em casa pública com alvará. 

Ao dar entrada nos papéis para a autorização de funcionamento, diante do inédito da situação, teriam se reunido o diretor do Departamento de Diversões Públicas, o governador e outras autoridades. O estabelecimento abriu na casa dos pais do delegado Nelson Soares de Oliveira, na rua Jayme Telles, bairro Partenon, em 08 de maio de 1971. A casa chegava a lotar, o que significa um montante de cerca de 400 pessoas. Dirnei afirma que 80% eram homossexuais, 10% heterossexuais e 10 % garotas de programa e lésbicas. 

Para o proprietário, a Flower’s ter garantido a abertura na propriedade de um delegado, em frente ao quartel, fazia com a polícia tivesse a sensação de controle sobre a situação. Houve apenas uma intervenção, cerca de seis meses depois da inauguração. Dirnei teria avisado os presentes da chegada dos fardados, o que lhe teria rendido rápida prisão, momento em que foi algemado e levado à delegacia. Os policiais teriam revirado a casa em busca de produtos contrabandeados, bebidas ou cigarros e maconha. Nada encontrando, o quiproquó foi encerrado.

A mítica Verusca e Dirnei Messias, em 1972, na Boate Flower’s. Acervo de Dirnei Messias.

É relevante mencionar que Dirnei ainda abriu as casas noturnas Maxim’s (1974-1977), somente para lésbicas, L’Alcazar (1976-1977), New Flower’s City (1977-1980), Papagayu’s Tropical Club (1978-1980) e a Kokeluche (1978-1980). Nenhuma delas teria tido problemas para a liberação.

Uma lenda urbana: Flávio Alcaraz Gomes

No campo dos fuxicos eternamente renovados, merece menção o julgamento do jornalista Flávio Alcaraz Gomes (1927-2011), que ficou sob a atenção da Agência do Serviço Nacional de Informações, filial de Porto Alegre. Existem muitas versões para a noite fatídica e os motivos que levaram o jornalista a matar a estudante Maria José Alberton Silva (1951-1976) com um tiro de espingarda. O ocorrido gerou rebuliço nos meios de comunicação. Pichações de “Alcaraz Gomes assassino” eram vistas em algumas paredes.

A vítima era estudante da Faculdade de Ciências Sociais, Filosofia e História da PUCRS. As colegas e os representantes do Diretório de Estudantes queriam justiça. Flávio trabalhava na Rádio Guaíba, o que tornou tudo mais turbulento. Para a polícia, ele declarou que vinha sofrendo ameaças de morte. Com o intuito de proteger a ele e a esposa, já havia solicitado o auxílio da Secretaria de Segurança Pública. No dia 11/04/1976, à 1:00, o casal chegou em casa de táxi, quando Flávio viu uma camioneta estacionada próximo à entrada. O endereço ficava nos altos de Santa Tereza, rua Sinke, 179. Dentro da residência, muniu-se com uma espingarda, saindo para tirar satisfação. Maria estava no veículo com um médico, aparentemente escutando música e namorando. 

Versões contam que Flávio, então com 52 anos, estava embriagado. Que tentou mandar o casal embora, mas que não obteve sucesso. Tiro na cabeça, morte constatada. Flávio acabou condenado, após muitos anos de idas e vindas do processo, em 26 de junho de 1981, a dez anos de prisão. Ficou detido apenas dois. Conforme os filhos de Flávio, o pai relatava, convictamente, que não passara de um acidente.

O Serviço Nacional de Informações registrou algo curioso. Afirmaram ter havido uma interferência na cobertura do assassinato. O fotógrafo Antônio Vargas, então na Secretaria de Educação e Cultura (SEC/RS), que também trabalhava para O Estado de São Paulo e para a Veja, por algum motivo não relacionado, teria pedido às estudantes e aos representantes do DCE da PUCRS que colocassem em nota, no jornal Zero Hora, que Flávio Alcaraz era homossexual. Para que a informação tivesse mais impacto, teria dado o contato de diversos outros periódicos. Vargas, de quem não há maiores informações, era considerado comunista e subversivo pelos agentes do SNI. 

As anotações sugerem um factoide. De qualquer forma, caso perguntem a um gaúcho das antigas, boa parte vai dizer que Flávio não aguentou ver o namorado com uma moça e que a razão do crime, portanto, foi passional. Outros dirão que não há nada verossímil nessa interpretação para o derradeiro. O melhor filme não é aquele que deixa em aberto o final? 

Operação Condor e as supostas lésbicas

A Operação Condor já foi abordada em vários trabalhos acadêmicos. Entre eles, A memória, a informação e o silêncio da lesbianidade no Serviço Nacional de Informação, nas décadas de 1970 a 1980, por Denise Braga Sampaio, que mencionou o caso da juíza Regina Maria Bollick. 

Formada em Direito, em 1970, pela Universidade de Santa Maria, Bollick foi nomeada juíza, em Canoas, em 1973. Aprimorou os estudos na Holanda e em Roma, estudando o sistema penitenciário. Ao conceder uma entrevista para a Revista dos Três Poderes, em 1982, mencionou que o país estava entrando em um “estado policial exagerado”. Conforme o documento do Serviço Nacional de Informação: “Disse que as malhas da justiça brasileira são engraçadas, pois deixou [sic] passar os grandes e retêm os pequenos.”

Por acusar policiais de tortura, por advogar em defesa da anistia, por defender os presos políticos Lílian Celiberti e Universindo Rodrígues Díaz (1951-2012), sequestrados pela Operação Condor, a juíza era figura non grata. A ficha descritiva feita pelos militares a associou à lesbianidade, dizendo-a “dada a práticas homossexuais” como se demérito. Bollick é sempre lembrada, ao lado de Maria Berenice Dias, como das primeiras, no final dos anos 1970, a fazerem carreira feminina na magistratura do RS. Antes disso, a mulher não era admitida nem no concurso, um ato absurdo e discricionário vindo do próprio tribunal.

Para alguns que trabalharam este caso, é forte a evidência do uso da lesbianidade como agravante para a condenação de desafetos pelos militares. 

Serge de Vinholes

Quando Melchiades Afonso Vieira assumiu como prefeito, em Tapes/RS, em 1969, era considerado “comunista socialista e brizolista”. A Secretaria de Segurança Pública do RS, através do Serviço Centralizado de Informações, reuniu supostas informações sobre seus planos de governo. Entre as ações, o convite para que Serge Anale [Annella?] Vinholes, médico em Camaquã, assumisse a direção do Hospital Nossa Senhora do Carmo. Para os militares, “Serge é um elemento de péssimos antecedentes, pois além de alcoólatra inveterado é pederasta passivo e ativo […].” Sobre o profissional, complementaram que “segundo consta, o mesmo não é formado em Medicina.” 

Em 1957, o jornal Correio da Manhã, edição de 14 de junho, já havia anunciado a prisão de falso dentista/médico, que atuara no RS, em Minas, São Paulo e no Ceará. Serge Annella Vinholes (1914-1976) teria iniciado curso de Medicina, sem concluir, em Paris. Parece o mesmo relacionado como pederasta pelos militares, porque a reportagem informa que estava com 43 anos e que nascera no RS.  

Sabe-se da existência de um falso médico chamado Serge de Vinholes, que, por vezes, se dizia francês. Em 1965, depois de atuar em vários lugares do Brasil, foi recolhido pela Polinter. Conforme o Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, edição de 25/11/1965, ele prestou depoimento assinalando que havia, sim, se formado em Paris. Acaso se trate do gaúcho, filho de Benjamin Constant Vinholes e de Suzane Burtin Vinholes, era um mentiroso contumaz. Na certidão de óbito, consta que era casado e que teve três filhos. Importa menos o próprio Serge do que a tentativa de desabonar o caráter, a partir de uma atribuída sexualidade, de alguém indicado por um prefeito “esquerdista” a integrar o governo.

Festivais de pederastia 

Outro imbróglio, de pequena monta, de âmbito político é o do bageense Favorino Bastos Mércio (1917-2004), formado em Direito, enquanto representante do Rio Grande do Sul no Escritório Gaúcho, no Rio de Janeiro, espécie de representação do governo gaúcho naquele estado. Apesar de ser 1982, tempo de abertura política, o Serviço Nacional de Informações ainda trabalhava nos moldes da Ditadura. Para evitar possível desabono do estado sulino, um documento interno sugeria que fossem investigadas possíveis atividades homossexuais que estariam transformando o escritório em “ponto de convergência de pederastas”.

Em 1982, ainda, o porto-alegrense Antônio Fioravante Crivellaro (1934-2004) assinou – sozinho – o manifesto do Movimento Liberdade, Moralidade e Cultura (LMC), dianteira de um grupo que se dizia descontente com o sistema econômico, político e social. Colocava-se como defensor dos operários e dos professores. Responsável pelo Liceu de Música Palestrina, Crivelaro assinou um documento de cunho moralista: “São homens insatisfeitos com o atual sistema político, econômico e social. Queremos iniciar um basta às baionetas que servem para ameaçar operários e as nossas indefesas professoras. Um basta às imoralidades que se renovam quase que semanalmente. Um basta aos administradores da nossa cultura, que de cultura entendem, talvez, de corrida de cavalos ou de festivais de pederastia, de uisquiadas e de beberagens…”. 

Mais gente andava preocupada com bacanais. O I Encontro da Juventude Gaúcha – Cio da Terra, ocorrido entre 29 e 31/10/1982, em Caxias do Sul/RS, foi descrito em termos alarmistas: “O que mais despertou a atenção […] foi o comportamento liberal, amoral e contrário a todos os preceitos sociais aceitos pela sociedade. […] destacam-se as seguintes: ingestão de grande quantidade de bebidas alcoólicas (vinho e cachaça), fumo de maconha e uso indiscriminado de psicotrópicos industrializados; atividades sexuais promíscuas e públicas (heterossexuais, homossexuais e grupal); banhos coletivos nus […]”. Quem diria que Woodstock foi, na verdade, em Caxias do Sul?

As acusações de Crivellaro também parecem revelar do cenário da capital onde vivia. Para uma visão mais panorâmica, embora com suas limitações, uma pesquisa sobre a sexualidade do adolescente da capital, feita entre março e outubro de 1982, traz alguns resultados interessantes. A pesquisa foi conduzida pelo psicanalista Júlio Campos, pelas psicopedagogas Maria Elisabeth O. Cardoso, Fany Miriam Axelrud, pelo psiquiatra Paulo Borghetti e pelas psicólogas Marta Brizio, Jussara Borges e Maria Nair Schmidt. 

De antemão, o rastreamento mostra um desvio incompatível com a seriedade de uma pesquisa nos dias de hoje, visto que se informou que “o trabalho procurou apresentar aspectos importantes da vida sexual do adolescente […sendo que] houve a preocupação de entrevistar jovens ‘normais’, que não apresentassem desajustes, por essa razão, não foram incluídas conclusões baseadas em experiências de consultório, levando-se em conta que os que ali procuram auxílio não estão aptos a proporcionar uma estatística de comportamento geral.” Em todo o caso, dos 423 adolescentes “normais” entrevistados, conforme resultados estampados na Zero Hora, em dia 28/11/1982, 56,2% considerava a experiência homossexual anormal. Ruim? Pode ser, mas deixava um número assombroso de 492.958 pessoas, considerando o censo de 1980, que achavam o fuco-fuco normal.

Zero Hora, 28/11/1982.

Corroborando o bom clima para esse público, em 1979, o Jornal do Gay, que circulava no Sudeste, e que era objeto de atenção da Divisão de Segurança e Informações, publicizou, para os turistas interessados nos pagos sul rio-grandenses e num bom bombachudo, que iriam encontrar “um dos ambientes mais convidativos à badalação gay no Brasil.” Como lugares propícios para encontros, foram elencados a rua da Praia, a avenida Independência, a avenida Farrapos, a rua José Bonifácio, a praça Parobé, a praça Otávio Rocha e o Parque Farroupilha. Entre as casas especializadas, a Boate Flowers (avenida Independência, 908), o Ego Sum, o Bar Bon Ami (rua Salgado Filho), o Opção (para lésbicas), a Number One (na Conceição, 500) e algumas saunas. Animado, não? Cole na Parêntese na semana que vem, quando encerra essa série.


Fontes: Favorino Bastos Mércio: Informe 020/15/ARJ/1983; Cio da Terra: Informe 250/19/AC/82; Flávio Alcaraz Gomes: Informação 239/119/APA/76; Jornal do Gay: Encaminhamento 143/79/DSI/MJ; p. 7; Luíz Allegretti: RR1/00007/201/BRA/86. Movimento LMC: Informe 076/SS15/APA/1982; Pesquisa sexualidade: Informe 448/19/APA/82; Regina Maria Bollick: Informe 092/16/AC/1983; Serge de Vinholes: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14/07/1957. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25/11/1965; Tese de Denise Braga Sampaio: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/22978/1/DeniseBragaSampaio_Tese.pdf ; Entrevista com Dirnei Messias em 11/12/2023.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

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