Ensaio

Framengo!!

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Framengo!! Foto: Pexels/Pixabay

Uma observação inicial: apesar do título efusivo do texto (com dois pontos de exclamação!!), o autor desta coluna se diz gremista. 

O que deve chamar atenção no título não é o nome da equipe futebolística em si, mas a maneira como o nome foi grafado – ao invés de “fl” (Flamengo), “fr” (Framengo). Essa grafia tenta reproduzir uma pronúncia muito comum, que tem se popularizado no Brasil. Obviamente, essa troca de “L” por “R” em um encontro consonantal não se restringe à palavra “Framengo”. Outras palavras também estão passando por processo semelhante. Se prestarmos atenção, ouviremos quem diz “grobo” (ao invés de “globo”), “pranta” (ao invés de “planta”) ou “brusa” (ao invés de “blusa”). São pronúncias relativamente correntes que, via de regra, são estigmatizadas socialmente. Na verdade, não só a pronúncia é estigmatizada como também (e principalmente) sofrem estigma social os falantes que usam essas palavras.

Contudo, o que vemos aí é um processo fonético-fonológico já bastante antigo na língua portuguesa, que nos acompanha desde os tempos do antigo latim, nossa “língua-mãe”. Os linguistas e gramáticos chamam esse processo de rotacismo. É quando trocamos um segmento sonoro de uma palavra (como um “L”, por exemplo) por um “R”, tal como vimos em “Framengo”, “pranta”, etc. Nesses casos, o R substituiu o L em um encontro consonantal (fl > fr, pl > pr, etc.). Mas o rotacismo também pode acontecer em final de sílaba, como na pronúncia da palavra “arface” (ao invés de “alface”), que também já escutei por aí. Interessante que o oposto também acontece: às vezes produzimos uma palavra com um som de “L” no lugar do som de “R”. Quem aqui nunca ouviu as palavras “verduleiro” (ao invés de “verdureiro”), “cabeleleiro” (ao invés de “cabelereiro”) ou “flouxo” (ao invés de “frouxo”)? Esse fenômeno de substituir o “R” pelo “L” se chama lambdacismo

Ambos os fenômenos – rotacismo e lambdacismo – estão constantemente presentes na história do português. Podemos não falar essas palavras com essas pronúncias (“Framengo”, “flouxo”, “pranta”, “verduleiro”…), mas elas já estão circulando por aí. E, por enquanto (destaque-se o por enquanto), são consideradas formas erradas ou desviantes, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Entretanto, como diria Ferdinand de Saussure (um linguista franco-suíço, muito influente no século 20), “o tempo altera todas as coisas; não há razão para que a língua escape a esta lei universal”. Além de ser uma verdade universal que a língua muda com o tempo, também o tempo altera a própria norma culta da língua. Por isso, dizemos que por enquanto tais formas são consideradas “desvios”, “vícios de linguagem”. O que o futuro reserva a essas formas não temos como saber. 

O que sabemos, no entanto, é que muitas palavras do português corrente que hoje são consideradas corretas de acordo com a norma culta da língua já passaram por esses processos. Para nos atermos ao fenômeno do rotacismo: a palavra “grude” vem da palavra latina gluten (de onde ainda preservamos também “glúten”), “prazer” vem do latim placere, nosso adjetivo “brando” vem da palavra latina blandu, a cor “branca” vem do latim blanco e por aí afora. Ou seja, essas palavras tão comuns hoje são resultado do processo de rotacismo que atua – e tem atuado frequentemente – na história da língua. 

Se dermos um passo mais curto na história da língua e voltarmos apenas até a época de Luís de Camões (1524-1580), grande poeta português, conhecido por seu poema épico “Os Lusíadas”, encontraremos a palavra “frechas” (ao invés de “flechas”):

Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar, fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes, 
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

E também “ingrês” (ao invés de “inglês”) e “frauta” (ao invés de “flauta”):

Era este Ingrês potente e militara 
Cos Portugueses já contra Castela, 
Onde as forças magnânimas provara 
Dos companheiros, e benigna estrela. 
Não menos nesta terra exprimentara 
Namorados afeitos, quando nela 
A filha viu, que tanto o peito doma 
Do forte Rei que por mulher a toma.

Nesta frescura tal desembarcavam 
Já das naus os segundos Argonautas, 
Onde pela floresta se deixavam 
Andar as belas Deusas, como incautas. 
Algüas, doces cítaras tocavam; 
Algüas, harpas e sonoras frautas; 
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam 
Seguir os animais, que não seguiam.

Ou seja, à época de Camões, essas palavras, “frecha”, “ingrês”, “frauta” (consideradas “erradas” e “vícios de linguagem” hoje em dia), faziam parte do repertório lexical dos falantes cultos da língua portuguesa. Isso nos faz perceber que o mundo dá voltas! Aliás, numa dessas voltas, veja que interessante a história da palavra “frouxo”, adjetivo antônimo de “apertado, retesado”. Essa palavra vem da palavra latina flouxo. Lá pelas tantas, ela passa pelo processo de rotacismo e chega ao português como “frouxo”. E, como vimos, hoje em dia ela tenta voltar às suas origens e começa a ser pronunciada como “flouxo” novamente. Ou seja, a palavra passa por um processo de rotacismo (flouxo > frouxo) e agora passa por um processo de lambdacismo para voltar à sua origem latina (flouxo > frouxo > flouxo). Repetindo: o mundo dá voltas!


Para saber mais:

Processos como rotacismo e lambdacismo em português brasileiro contemporâneo são explicados de maneira bem ilustrativa no livro Preconceito linguístico (Parábola Editorial, 2015). Além de apresentar esses fenômenos com exemplos, o autor do livro, o linguista Marcos Bagno, discute o estigma social que os falantes que pronunciam palavras como “Framengo” sofrem na sociedade brasileira. 

Se o leitor se interessa pela história da língua portuguesa, recomendo os livros Latim em pó (Cia das Letras, 2023), História concisa do português (Vozes, 2014) ou um mais técnico, mas repleto de exemplos de palavras latinas e suas correspondentes atuais em português, Introdução ao estudo da história da língua portuguesa (Virtual Books, 2003), deste que vos escreve. 


Gabriel de Ávila Othero é professor de Linguística do Instituto de Letras da UFRGS.

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