Ensaio

Jean-Claude e a vida no Festival de Gramado

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Jean-Claude e a vida no Festival de Gramado Tapete vermelho aguardando inicio da entrega dos Kikitos | Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

O grande crítico, pesquisador e cineasta Jean-Claude Bernardet costuma dizer que o ideal é ver um filme pelo menos duas vezes antes de construir um juízo estético sobre ele. Esse conselho, é claro, costuma ser seguido mais frequentemente em publicações acadêmicas que em textos jornalísticos. Num festival de cinema, com dezenas de títulos, ninguém tem tempo pra ver um filme mais de uma vez. Lembrei do Jean-Claude porque esteve presente (em forma audiovisual) em dois momentos importantes neste Festival de Cinema de Gramado, edição 51.

Ele faz uma participação especial em “Hamlet”, de Zeca Brito, vencedor da competição de longas gaúchos, que foi filmado quase todo em 2016. Jean-Claude, então um jovem de 80 anos, veio a Porto Alegre e deu uma aula informal sobre cinema e política para os estudantes secundaristas que ocupavam o Instituto de Educação General Flores da Cunha. Ele sublinha a ideia principal do filme: muitas vezes, no campo do embate político, a ação, mesmo que intuitiva e algo caótica, é mais importante que a eterna reflexão.

Ele também é diretor (em parceria com Fábio Rogério) e personagem central do curta-metragem “Cama vazia”. Em pouco mais de seis minutos, usando basicamente fotos de Jean-Claude internado num hospital, o filme faz uma reflexão poderosa sobre a morte e os métodos da medicina para postergá-la. Agora com 87 anos, nos deparamos com um Jean-Claude frágil, visualmente falando, mas forte, como sempre, enquanto um pensador de seu tempo, pois narra o filme com absoluta firmeza.

“O pior é que eu tenho pavor da velhice!”, grita a icônica atriz Helena Ignez no início de “Cama Vazia”. Pouco depois, o próprio Jean-Claude afirma: “A longevidade é um produto industrial”. Então, as perguntas que faço são: o Festival de Cinema de Gramado envelheceu? Ele ainda é agente importante nas ações políticas do cinema brasileiro? Ou sua longevidade é produto algo artificial da indústria cultural?

Minha suposta autoridade para tentar responder está baseada em minha experiência de vida. Meu segundo filme (em codireção com Nelson Nadotti), “Sexo e Beethoven”, estava na mostra super-8 de 1980. São, portanto, mais de 40 anos assistindo ou participando das glórias e dos momentos difíceis do festival. Não estive em todas as suas edições, mas na maioria delas eu estava lá.

Posso dizer, com alguma tranquilidade: o festival envelheceu, sem dúvida, ficou mais careta (como muitos velhos ficam), mas não caducou. Ele ainda tem energia, ainda é capaz de surpreender, exibindo filmes muito bons (ao lado de alguns bem ruins), ainda funciona como uma espécie de panorâmica do nosso cinema, tanto do mais autoral, como do que chamávamos de “cinemão”, mais preocupado com o mercado. Ainda é possível encontrar pelas ruas personalidades importantes da área, embora boa parte do público só se interesse pelos “artistas da televisão”. Digamos que o festival envelheceu com dignidade e, se tem algumas rugas e de vez em quando tropeça, isso é natural. Viver também é errar.

Gramado já assistiu a momentos fundamentais da política cinematográfica: contra a censura, contra a ditadura, contra Collor e contra Bolsonaro. Em 2019, houve conflitos físicos, com arremesso de cubos de gelo pelo pessoal dos bares da rua coberta contra artistas que faziam um protesto. Este ano, tudo foi mais tranquilo, sem barracos explícitos. As reivindicações foram verbais, e quase tudo aconteceu no cinema: queremos cota de tela para o produto nacional, queremos mais investimentos na cultura, queremos democratizar e descentralizar os recursos, queremos ampliar a diversidade étnica e de gênero em todas as fases da produção, queremos que os gigantes do streaming paguem impostos e exibam conteúdo brasileiro. Pautas justas e antigas. Porém, perto do que já assisti em outras épocas, foi um festival bem-comportado, talvez porque as autoridades presentes, de modo geral, tinham a simpatia dos cineastas.

A longevidade do festival foi discretamente ameaçada pela falta de verbas oficiais. A solução foi economizar, retirando a mostra internacional (que deve retornar no ano que vem). Também já se foram os tempos das grandes festas com queijos e vinhos e distribuição generosa de tickets para as refeições. Tudo agora é mais controlado e burocratizado. Mas o festival segue pagando passagens aéreas e hospedagem para alguns integrantes das equipes dos filmes concorrentes, mesmo os curtas. Isso é raro no mundo todo. Em compensação, os espaços para os debates e para as atividades do mercado ficaram mais modestos e apertados, talvez reflexo da diminuição da verba. Quem sabe, no ano que vem, as coisas melhorem. Havia, como sempre, patrocínios de bancos e empresas. Uma delas era a Havan, que tem uma loja imensa na estrada para Canela. A recepção aos seus comercias não foi nada calorosa.

Faltou falar dos filmes. Por enquanto só citei dois (e muito bons). Não farei comparações, pois não vi todos. Mas seria impossível não destacar o grande vencedor, “Mussum – o filmis”, que consegue a façanha de ser um produto politicamente engajado e bem divertido. Seu diretor, Silvio Guindani, afirmou que fez o filme pensando nos espectadores, o que é sempre saudável, contanto que não vire aquela velha e perigosa gincana de tentar fazer sucesso abusando de clichês e buscando as temáticas da moda. Muitos já fracassaram nessa gincana. E continuam fracassando. Então por que são selecionados? Porque o cinemão, mesmo quando desanda, tem parceiros econômicos poderosos em sua produção e distribuição. Quase todo festival de cinema funciona assim.

O filme de Guindani é mais musical que cômico, mais de personagens que de ação, e consegue se comunicar bem com amplas faixas do público. Ailton Graça e Yuri Marçal, que interpretam Mussum e receberam Kikitos muito merecidos, têm talento e esbanjam carisma. Essa costuma ser uma boa receita para manter o espectador interessado no que acontece na tela.

Agora é esperar o número 52. O cinema brasileiro ainda tem em Gramado uma vitrine bem bacana. Em vez de gritar “O pior é que eu tenho pavor da velhice!”, segue gritando “O pior é que eu tenho pavor de não ter filmes para exibir.” Bem que tentaram, várias vezes, cortar o oxigênio, mas a longevidade do nosso cinema é um bendito produto da imensa teimosia dos artistas brasileiros.


Carlos Gerbase é cineasta, escritor e mítico baterista da banda Os Replicantes.

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