Ensaio

Laboratório de Movimento

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Laboratório de Movimento Foto: Bianca Brochier

Nada acontecendo que possa ser percebido da pele para fora. Quase nada. A sala silenciosa, a presença densa. Um tanto de movimento acontecendo da pele para dentro. Aí transborda, o movimento. Toma o espaço. Os dedos das mãos, a sola dos pés, os lábios sobre os dentes, as rugas das pálpebras. Articulações circulam, flexionam e estendem. Pernas, braços, colunas expandem, encolhem, arqueiam, torcem. As mãos tocam o rosto, a garganta e a boca produzem sons, os pulmões inflam e desinflam, em um diálogo fluído e constante com o espaço ao redor. Um bocejo, vários bocejos. Caretas todas. E aí tudo cessa – ou tudo segue – mas de outro jeito. 

Há cerca de 12 anos assisto pessoas espreguiçarem. É meu trabalho, mas também um grande prazer. Observo atenta e curiosa as escolhas sendo feitas enquanto o espreguiçar acontece, os caminhos familiares e os recém descobertos, os microajustes que transformam a percepção, o tempo da coisa toda acontecer em cada corpo e em todos os corpos. Existe todo um saber muito singular que aparece no espreguiçar. Existe todo um saber coletivo, da experiência compartilhada de existir como ser humano, que aparece no espreguiçar. 

Para grande parte das pessoas que chegam na sala de prática de movimento poucos momentos do dia são de tanta conexão com o próprio desejo e de tanta confiança no saber do corpo quanto o momento de espreguiçar. Não existe dúvida, não existe espaço e nem tempo transcorrido entre o que se pensa e o que se faz, existe só o que está acontecendo no momento em que está acontecendo. Ali o corpo sempre sabe qual o caminho para o conforto, ele sempre sabe o que fazer. Fora dali, no entanto, o corpo só é protagonista quando dói, e às vezes nem assim. Eu sei, eu sei, o tempo do relógio não comporta uma existência mais integralmente humana, essa que sabe/sente que a cisão entre mente e corpo só existe na ficção. O capitalismo não comporta. 

Escrevo esse texto em um intervalo entre uma aula e outra, sentada em uma cadeira desconfortável, olhando para o relógio a cada tanto. Meu pé esquerdo, no entanto, é sorrateiro. Escapou do sapato e espreguiça escondido embaixo da mesa. Ele sabe. O corpo sempre sabe onde está o conforto, e, às vezes, mostra o caminho à nossa revelia. Seria mais fácil existir sem ele, o corpo, pensa o corpo ali sentado há oito horas escrevendo palavras em um computador, esquecendo que se as palavras vêm para o pensamento é porque elas foram também sentidas/vividas/experienciadas na materialidade, no corpo. É fácil esquecer que se sabemos que existe “em cima” e “embaixo” é porque um dia aprendemos a rolar, trazer a barriga para o chão, olhar para o mundo como olham os outros seres que se relacionam com a gravidade como nós, e aí as relações verticais passaram a existir para nós. E sim, escrevemos sobre elas. Cercamos a verticalidade de símbolos e significados dos mais materiais aos mais abstratos. Ela está na arquitetura, na dança, na biologia, na sociologia, na física, no manual de instruções para montar a estante. E quanto mais experimentamos a verticalidade, mais a preenchemos de significados. E quanto mais significamos a verticalidade, mais a nossa experiência dela se modifica. No fim das contas (e também no começo e no meio) tudo sempre passa pelo corpo. 

Desde a década de 1940 pessoas que se debruçam sobre o estudo do desenvolvimento infantil, motor, cognitivo e psicológico, apontam que o corpo é o laboratório primeiro da experiência do mundo. Aquilo que os sentidos apreendem, do mundo e de nós mesmos, informa o nosso desenvolvimento, a nossa compreensão e as nossas relações com outros seres e com o entorno. Aquilo que o corpo sente e faz é o que organiza, na criança, as possibilidades do mundo ao seu redor. 

É absolutamente mágico – e incontestavelmente mundano – assistir uma criança pequena no seu esforço de dar sentido às coisas a partir do cruzamento de experiências que têm com elas. Se deixada explorar livremente, a criança também não duvida do seu corpo. A experiência sensível é sempre a primeira mediadora entre a criança e o outro, a criança e o novo, a criança e ela mesma. O espreguiçar existe antes de qualquer esboço de palavra. O corpo já sabe o que quer e precisa antes mesmo de se nomear corpo. As palavras vêm, e também para que elas existam existe uma língua que sabe os movimentos que pode fazer. No fim das contas (e no começo e no meio) palavra é corpo.

Veja, eu poderia dizer que corpo também é palavra. É. Acontece que me interessa pouco colocar o corpo como esse que se afirma a partir da aproximação com aquilo que é tido como da ordem do intelectual, histórica e culturalmente valorizada em detrimento do corpo e dos seus saberes. Aproximar ainda presume existir em separado. Vê onde eu quero chegar?

… 

Voltamos a espreguiçar, então. Ele acontece em todos os corpos. Alguns corpos, no entanto, conhecem mais atalhos e caminhos do que outros. Eles tiveram mais tempo, experimentaram-se mais em movimento. O corpo aprende quando os mesmos caminhos aparecem muitas vezes, quando eles se cruzam com outros já familiares, quando existe tempo para desfrutar deles, quando eles respondem a inquietações e perguntas antigas. E aí ele aprende de jeitos que escapam às possibilidades da palavra. Ele aprende sobre o tempo, sobre ritmo, sobre o espaço, sobre a gravidade, sobre ceder e resistir, sobre sustentar a direção, mudar de direção, sobre comunicar-se, sobre jogar com outros corpos. Ele aprende e transborda, mudando as palavras que usamos para significar e expressar o que pensamos e sentimos quando experimentamos tanto via corpo, porque ele, o corpo, decide que algumas palavras já não cabem. Estar em movimento é, então, um caminho para confiar no corpo e na sua curiosidade, um caminho de abrir espaço para que o corpo ponha em dúvida as palavras que o preenchem e cobrem. E aí encontrar outras, que talvez só existam porque outras pessoas já se fizeram questões a partir do mesmo lugar, o corpo. 


Luíza Fischer é professora e bailarina. A curiosidade pelo movimento humano move suas propostas pedagógicas e também seu fazer artístico.

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