Ensaio

Matteus é peão! – Entre a identidade regional e a consciência de classe

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Matteus é peão! – Entre a identidade regional e a consciência de classe

“Matteus não é agroboy, é peão. Nós somos pobres’”, diz Luciane Amaral, mãe do Matteus Amaral, em uma entrevista. Aproveito a exposição nacional que o Brother Matteus, apelidado de Alegrete, está tendo, num dos maiores reality shows da mídia nacional (BBB24), para falar de um tipo de trabalhador que, às vezes, não tem seu ofício e classe social enfatizados. A projeção de Matteus pode auxiliar no debate sobre as clivagens de identidades regionais e de classe. A identidade regional, o regionalismo e/ou o gauchismo (tradicionalista) podem ofuscar a identidade de classe desses trabalhadores rurais, já alertava Tau Golin em A Ideologia do Gauchismo. Os trabalhadores rurais caraterísticos da região da campanha (pampa brasileiro) são conhecidos por peões campeiros ou gaúchos. Estes peões campeiros são os trabalhadores dos estabelecimentos agropecuários (pecuária extensiva e de corte). Como escreve Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, a fragmentação das identidades pessoais e as mudanças nas estruturas e instituições tornam o elo entre o indivíduo e a sociedade mais variável, provisório e problemático. Pretendo, neste breve texto, mobilizar a possibilidade de identificação de Matteus não só com as representações da identidade regional, mas, sobretudo, com a identidade de classe, dos trabalhadores subalternos, como afirma Marcel van der Linden, em Trabalhadores do Mundo. Primeiramente discorrerei sobre a construção histórica do tipo social do gentílico gaúcho, depois escreverei sobre os trabalhadores rurais da pecuária.

A história complexa e diversa do tipo social gaúcho e do respectivo gentílico no Rio Grande do Sul:

A palavra gaúcho adquiriu sentidos e significados variados no transcorrer do tempo. Há muito tempo existe uma disputa pelo sentido da palavra e pela identidade do povo rio-grandense. Quem é o gaúcho? A palavra gaúcho pode se referir ao habitante e ou natural do Rio Grande do Sul, e, nesse caso, é um gentílico. Mas esse gentílico só foi aceito, mesmo que não pacificamente, no decorrer do século XX. Também pode se referir a um “tipo social” com características socioculturais. Como gentílico, o termo gaúcho foi aos poucos sendo apropriado pelos habitantes e naturais do Rio Grande do Sul e, hoje em dia, temos o gaúcho da campanha e fronteira (região do pampa, metade sul e fronteira com o Uruguai e a Argentina/região da pecuária extensiva), gaúchos serranos, gaúchos missioneiros, gaúcho do litoral e região metropolitana, gaúchos urbanos (de vila, de apartamento) e rurais (campeiros e camponeses). 

Os “gaúchos” dessas microrregiões do Rio Grande do Sul possuem algumas características em comum e muitas diferenças de acordo com a história de formação de cada região. Já sobre o tipo social “gaúcho” é noticiada sua presença na região do Prata desde a metade do Século XVIII, no contexto da Colônia do Sacramento e da Guerra Guaranítica (das Missões Jesuíticas e suas estâncias missioneiras). 

Do século XVIII até o Século XIX, mais precisamente até a Guerra do Paraguai, gaúcho era um adjetivo, usado pelas elites eurocêntricas, para designar pessoas que viviam de forma alternativa aos seus valores e costumes. Para essas elites, os gaúchos eram párias sociais, bandidos, malfeitores, contrabandistas, sem famílias, marginais do campo. Viviam uma vida nômade, da preia do gado xucro e chimarrão, roubando e contrabandeando couros e gado. Em suma, chamar o outro de gaúcho era uma forma de ofensa. 

Depois das guerras de independência do Século XIX e com o surgimento do nacionalismo, os caudilhos mobilizavam esse tipo social para enfrentar as cortes, os vice-reinos, e o poder central (Buenos Aires, por exemplo). Os inimigos dos federalistas, dos republicanos e dos caudilhos chamavam-os, de forma depreciativa, de gaúchos (bandidos, bárbaros, selvagens, marginais, anarquistas). Como na metade sul do Rio Grande do Sul, região da campanha, na formação dos Estados Nacionais, existia uma mistura étnica e cultural com os habitantes do Uruguai e da Argentina, eram os mesmos grupos sociais que transitavam nesse espaço (transfronteiriços), os habitantes da campanha e fronteira do Rio Grande do Sul passaram a ser chamados de gaúchos também (eram inimigos do poder central, da Corte no Rio de Janeiro) (Ver Guerra dos Farrapos e Guerra Civil de 1893, 1923).

A partir da guerra contra o Paraguai, 1870, ocorre um movimento romântico na cultura letrada, no Prata, Brasil e no RS, para construir uma imagem idealizada e romantizada de um sujeito social gaúcho como rebelde, lutador, patriota, pajador e vinculado aos trabalhos nas grandes estâncias. Nesse contexto, como exemplo, José de Alencar publicou o clássico O Gaúcho. Aos poucos foi se criando uma imagem do gaúcho identificada como o campeiro, o trabalhador campeiro, das estâncias da metade sul (campanha e fronteira) do Rio Grande do Sul. Vejam que, a partir de então, ser gaúcho era ter as habilidades das lidas da pecuária nas estâncias, independentemente de ser patrão ou empregado. Esse trabalho de identificar o tipo social gaúcho com trabalho na pecuária teve muita força no início do século XX, década de 1920-1940 (objeto da minha tese). 

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Manoel Muniz, capataz da Estância Liscano, Arroio Grande. Fonte: Revista A Estância, Órgão da União dos Criadores do R.S; Ano III, nº 27, Maio de 1915.

Assim, o termo gaúcho passa a ser aplicado e adotado pelos naturais do Rio Grande do Sul, os naturais e habitantes da região da Campanha e Fronteira, os praticantes da pecuária extensiva e ou changueiros e trabalhadores sazonais dessa região. Ocorreu, assim, um movimento regionalista e tradicionalista desde o final do século XIX. Esse movimento cultural se transformou com o tempo e ganhou mais força nos idos de 1947. Naquele momento, surge um movimento tradicionalista que produz sua versão sobre a cultura gaúcha (o tradicionalismo). Para esse processo de construção da identidade e tradição, sugiro os livros De Rio-grandense a Gaúcho: o triunfo do avesso, de Carla Gomes e O centauro e a Pena – Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas, de Jocelito Zalla. 

O estudante da UNIPAMPA, o Brother Matteus, reproduz alguns hábitos e costumes característicos da identidade regional, como tomar o mate-chimarrão, o uso da boina, as bombachas, as músicas e as danças regionais, seu linguajar característico, hábitos alimentares etc. Atualmente, existe uma diversidade de formas e práticas sociais que cabem como sendo de origem e matriz gaúcha. Pra quem não conhece de perto, essa diversidade pode gerar uma grande confusão entre o gentílico, o tipo sócio antropológico, a categoria profissional (campeiro, peão campeiro e capataz), as características microrregionais do RS, a tradição (costumes e hábitos) e o tradicionalismo (MTG, por exemplo). São processos diferentes, por vezes complementares e ou divergentes.

O Brother Matteus: changueiro, peão e domador

Vou escrever agora sobre o gaúcho enquanto peão campeiro, capataz, domador. Escrever sobre classe e sobre identidade de classe é escrever sobre consciência de classe. Existe uma diversidade de trabalhadores e trabalhadoras rurais e, entre eles, os trabalhadores e trabalhadoras da pecuária. Nem todos possuem suas profissões reconhecidas e regulamentadas. Muitas das atividades profissionais possuem características regionais, como os peões campeiros das estâncias do Rio Grande do Sul. 

Matteus eventualmente trabalha com seu padrasto, Luciano Cunha, que é um capataz de estância. As estâncias (fazendas) são estabelecimentos rurais de produção pecuária extensiva ou semi-extensiva (produção principalmente de gado bovinos, ovinos e equinos), localizadas sobretudo na região da campanha e fronteira do Rio Grande do Sul. Grande parte da produção pecuária é de exportação, através dos frigoríficos, para os mercados internacionais, incluindo o Oriente Médio. Algumas dessas propriedades possuem cabanhas e ou lavouras (granjas de arroz e ou soja). A paisagem do pampa está mudando rapidamente, como mostram Felipe Monteblanco e Andrea Sá Brito em suas teses. Nessas estâncias, que são grandes propriedades (no RS, são medidas em quadras; cada quadra com 87,12 hectares), o trabalho de rotina exige pouca mão de obra fixa, ou seja, empregam poucos peões campeiros e capatazes. Para os serviços de “safra” e, esporadicamente (vacinação, banhos, marcação, tosquia de ovinos etc.), é empregada mão de obra sazonal e esporádica. 

O padrasto de Matteus, conhecido pelo apelido de Ibirocai, é um trabalhador assalariado e fixo (possivelmente com carteira assinada) de uma estância na região do Ibirocai (rio na divisa do município de Alegrete com Uruguaiana). Capataz de estância é um tipo de gerente operacional dos trabalhos na estância, que , de acordo com a última convenção do sindicato, tem sob seu comando mais de dois trabalhadores. Já o Matteus, pelas informações que tenho, é um diarista (ganha por dia), popularmente chamado de changueiro. Ele trabalha de “bico”, um tipo de trabalhador sem vínculo empregatício e sem nenhum direito ou amparo trabalhista e previdenciário. Matteus faz parte do precariado, para lembrar Ruy Braga e A Política do Precariado, e destaco que esse tipo de relação de trabalho precário é parte constitutiva do modo de produção do capitalismo pastoril. 

A diária em uma estância está em torno de R$ 100,00 ou R$120,00. Às vezes, esses trabalhadores diaristas não querem ser fixos, preferem esse tipo de trabalho. É importante destacar: peão campeiro e capataz fazem parte da cultura regional, não possuem CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e suas atividades aparecem nos acordos coletivos do sindicato. Sobre o sindicalismo dos trabalhadores rurais do Rio Grande do Sul, sugiro o livro de Davide Carbonai Rural Workers, Sindicatos and Collecti-ve Bargaining in Rio Grande do Sul, publicado por Springer International Pu-blishing, publicado em 2022. 

De acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alegrete (STRA), Sr. Jesus Alzir Fernandes Dorneles, os trabalhadores rurais assalariados em Alegrete são classificados como Trabalhador de Pecuária Polivalente (CBO 6230-15), Trabalhador na Cultura do Arroz (CBO 6221-05) e Trabalhador da Cultura do Soja (CBO 6227-30). Na última Convenção Coletiva de Trabalho de Pecuária Polivalentes, ficou definido o salário de peão campeiro e cozinheira rural (bruto 1.755,00 e líquido 1.375,43) e o salário de capataz (Bruto 2.947,00 e líquido 2.353,86). Existem alguns benefícios negociados no acordo coletivo. Na pecuária, há ainda o inseminador, o domador, além de outras atividades e serviços, como esquila, alambrado etc.

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Matteus e um dos cavalos que ele domou. Fonte: https://cavalus.com.br/geral/bbb-matteus-amaral-cavalo-crioulo/

Matteus também ganha domando cavalos. A atividade de doma, geralmente, nas estâncias, vale um plus no salário dos trabalhadores. Em média a doma vale um salário a mais por cavalo domado. O trabalho dos campeiros, ou peões campeiros e capatazes, é realizado a campo e mangueiras com o uso de cavalos para montaria. É tradicional e costumeiro o emprego de cavalos para a execução das tarefas do trabalho na pecuária extensiva. O cavalo é mais do que uma ferramenta de trabalho, ele é um companheiro de trabalho para o peão campeiro, por isso a expressão e o choro de Matteus ao ver seu cavalo Chupim – “meu cavalo!”

Matteus e sua família moraram e trabalharam no interior do município de Alegrete, ele estudou em Polos Educacionais (Escolas do Campo) e tudo indica que teve contato, além da cultura tradicional (hábitos e costumes), com a cultura tradicionalista (MTG). 

Eu trabalhei em algumas escolas do campo em Alegrete, por mais de 10 anos. De certa forma fui um trabalhador da educação rural, um trabalhador da educação do campo. Apreendi um pouco da realidade desses jovens e famílias de trabalhadores rurais. 

Matteus atualiza para o século XXI a categoria de trabalhadores rurais conhecidos por gaúchos, como aqueles estudados por Ondina Leal em Os Gaúchos – cultura e identidade Masculinas no Pampa. Seu gosto musical, danças características, culinária, o mate-chimarrão, sua boina, seu vocabulário regional e o conhecimento das lides campeiras o caracterizam como um gaúcho tradicional (não necessariamente tradicionalista) da campanha e fronteira do RS, mas penso eu que ele representa mais do que isso, pois hoje em dia existem várias formas de ser gaúcho. 

Pra mim, Matteus é isso tudo junto e misturado; ele é, também, um campeiro e trabalhador rural precarizado da pecuária extensiva no capitalismo pastoril global (agronegócio). É interessante as pessoas se identificarem com a expressão da cultura regional, mas não podemos romantizar a realidade, as relações de produção e as relações de trabalho desses companheiros trabalhadores subalternos da pecuária: Matteus é um peão! Uni-vos!


Anderson R. Pereira Corrêa é professor da UNIPAMPA – São Borja e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. 

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