Ensaio

Memória de peixe

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Memória de peixe Recorte da capa de Graça Infinita. Cia das Letras/Divulgação

“Há dois jovens peixes nadando em um rio. Eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando em direção contrária, que os cumprimenta com a cabeça, dizendo: ‘Bom dia, rapazes. Como está a água?’ Os dois jovens peixes nadam por algum tempo, e num dado momento um olha para o outro e pergunta: ‘O que, diabos, é água?’”

Essa anedota foi proferida pelo escritor David Foster Wallace, no começo de um discurso de formatura do Keynon College, em 2005, e reinstala uma série de postulados que reverberam hoje temas fundamentais da crítica literária. A saber: a influência, a interpretação, as confluências e o impacto das diferenças sociais na captação das mensagens veiculadas no texto literário. Wallace se dirigia a uma plateia de formandos. Sua obra mais conhecida Graça infinita possuía ambição estética destinada a dialogar com bases supostamente restritas da sociedade. Contudo, a despeito de seus esforços, houve uma maciça mistificação de sua figura de escritor na sociedade de consumo, sendo suas obras catapultadas à categoria de livros de culto.

Naturalmente, sua escolha para realizar um discurso de formatura, na esteira de oradores mais óbvios como Bill Gates, Nicolas Cage e Steve Jobs deixava transparecer algum tipo de desvio entre o que acreditava escrever e o que era recebido pelos que o liam. De resto, levantava-se a questão elementar de que o autor das quase mil páginas de Graça infinita – a depender dos empenhos de uma diagramação confortável – não era o mesmo autor-convidado a pronunciar um discurso com forte teor para a autoajuda naquela manhã de outono. Para seus seguidores, tratava-se de uma inequívoca demonstração de versatilidade e flexibilidade. Para os demais – incluindo o autor desse arrazoado – era um inequívoco recado sobre a fragmentação da literatura na contemporaneidade, traduzido de forma eloquente na erosão do literário em nome do pedagógico.

Ao se multiplicar em inúmeros vídeos derivados de seu discurso, com direito a inserções de trilha sonora incidental e dramatização das rotinas representadas no texto, a obra atingiu um tom de alerta sobre os perigos da vida social nas sociedades capitalistas. Há, portanto, uma janela interpretativa que posiciona o observador em duas reflexões: a primeira diz respeito à possibilidade de se comparar um autor com ele mesmo, não mais na linha evolutiva das obsessões literárias que estariam presentes em rastros seminais de grandes gênios literários ainda em sua estreia, e sim no deslocamento do texto em relação ao seu produtor, considerando que a figura de autor se multiplica na necessidade de análise, havendo, pelo menos, um David Foster Wallace para seus romances e um outro para o discurso em questão.

O veículo discursivo oral, pronunciado em um contexto de festejo também condiciona – e talvez até determine – certos limites para a circulação daquelas palavras. De antemão, dá-se como certo que o orador não vai oferecer aos formandos concepções de vida sobre as condições restritivas de empregabilidade. Tem-se então um cenário no qual os receptores esperam conselhos cuja força prática esteja concentrada na ideia de confortar aqueles que agora deverão ingressar no mundo real. Evidentemente, a construção desse mundo será  mediada por um pressuposto tranquilizador, domesticador e, portanto, longe de ser dínamo de qualquer  experiência de esclarecimento. O discurso se apresenta como um alerta para aqueles que não sabem como a vida funciona e necessitam agora saber. E advoga para o fato de que o verdadeiro conhecimento não é aquele adquirido em horas de leitura e erudição, mas aquele colhido na possibilidade política de discernir sobre o que pensar e quando.

Há múltiplas ironias no fato de o próprio Wallace ser um autor de pensamento complexo, dicção rígida, um professor universitário, advindo de uma longa tradição de letramento e valorização da cultura formal. Seu discurso oferece consolo àqueles que eventualmente se sentirem desencorajados frente a ideia de tempo investido em sua própria formação. Para aqueles que, por sorte, se consideram quites na trajetória acadêmica, a presença de um autor-celebridade se parece com um prêmio que confere aos alunos a certeza de que agora estão aptos a se colocarem em posição de diálogo com os autores, que não mais aparecerão nos textos, nos corredores das bibliotecas, mas que podem ser agora ovacionados, em lugar aberto, em dia ensolarado de celebração, ao lado de pais, mães, e afetos de toda ordem.

Ao antecipar a vida dos formandos como uma rotina incontornável de afazeres burocráticos, através dos quais o indivíduo comum vê sua vida escoar, Wallace propõe um desafio que surge como sedução. Ao enunciar que isso é o que acontece com os pais e as mães deles, o autor aciona um mecanismo de recompensa, apelando para a possibilidade de eles tentarem superar a forma de vida de seus antecessores, mas na direção contrária, sugere que o caminho para a reconciliação simbólica definitiva é, na verdade, o encontro de um denominador comum a toda vida humana: a experiência de esvaziamento da razão reflexiva nas sociedades capitalistas. Tudo aquilo que determinava nos alunos uma marcação individual neles não passaria de um produto luxuoso – a partir de agora indisponível – chamado autoengano.

O tempo, uma vez trocado por mercadorias, estaria agora retornando aos pais e aos genitores que haviam, a duras penas, construído um ambiente no qual as condições eram artificialmente positivas. Há aqui outra bifurcação: por um lado aparece a sugestão de que há uma tarefa a sua espera (má notícia), do outro um consolo (é possível realizar essa tarefa de maneira diferente dos nossos ancestrais). Some do horizonte de expectativas desse indivíduo a ambição de transformar o meio que o cerca porque parece haver certo gozo no sentimento de que se pertence ao mesmo mundo, com as mesmas dores, agonias e impedimentos daqueles que vieram antes. É como se a minha limitação fosse a minha identidade. E agora o que me limita confirma o que sou.

Por fim, Wallace determina que a questão é responder a si próprio todos os dias: “isto é água, isto é água, isto é água”, como um mantra, como uma oração, como uma prece, como um enunciado de caráter eminentemente religioso, como convém a um tempo no qual as crenças se sobrepõem aos fatos. Uma dessas crenças de nosso tempo é a de que a Literatura tem mera funcionalidade instrumental e que isso justificaria não apenas sua presença no campo do debate, mas sua suposta supremacia, que residiria em um alto índice de aplicabilidade de conceitos teóricos engessados, como modo de extrair padrões de comportamento das obras, em uma espécie de modelo administrativo da estética. Assim, aquilo que é mero exercício mecanizante e classificatório toma o lugar como facilitador e eventualmente guardião do estatuto literário, em uma operação que os manuais escolares de literatura não cessam de repetir.

Wallace morreu em 2008, enquanto eu esperava a eleição de Barack Obama como alguém um dia esperou Godot. Não havia streaming e a crise do subprime preocupava Israel. A população da Faixa de Gaza protestava contra o massacre genocida. E a ONU fazia o que a ONU sempre faz: pedir calma a todos. Meu laptop Toshiba se conectava à internet através de um modem grudado à única porta USB que ainda funcionava. Através dele visitei algumas páginas que confirmavam o suicídio de David Foster Wallace e outras que alegavam ser a morte do autor uma mentira. Naquela noite, dormi sem saber. Quando acordei, procurei os livros dele em toda parte. Para comprar, para ler, para salvar. As livrarias já não os tinham, ou talvez nunca os tiveram. Não sei ao certo. Perguntei a um livreiro o motivo da ausência. Ele me disse que as grandes editoras já não estavam interessadas em bons livros, que o que interessava era o capital. 

Voltei para a casa e assisti na TV um analista detalhar a operação Chumbo Fundido. O objetivo, ele garantia, era acabar com o terrorismo no Oriente Médio e proteger o povo israelense. Fiquei pensando: em que medida a morte do vizinho ajuda na construção da paz? Dormi novamente sem saber.

No fim daquele ano Barack Obama se elegeu o 44º presidente dos Estados Unidos. Acabei não trocando de computador pois gastei mil trezentos e trinta reais nas barracas da Feira do Livro de Porto Alegre, paraíso onde todos os anos a cidade inventa um sonho feito de lonas brancas, alumínio, brochuras e pipoca doce.

Ontem estive lá novamente. Ouvi de um livreiro que as grandes editoras já não estão interessadas em bons livros, que só querem saber de likes, pois estão estranguladas pelas ordens internacionais dos fundos de investimento que as controlam. Me despedi dele desejando sorte. 

A sorte que tenho.

Percorri oito bancas e comprei todos os livros de Wallace que pude encontrar. Faz quinze anos que ele morreu. Estou vivo há quarenta e três.

Meu filho Francisco é um feto do tamanho de uma bola de futebol americano. Ele  não pode, portanto, ler nem sequer o próprio diagnóstico de seu ultrassom de segundo trimestre, quanto mais o que carrego nessas sacolas; mas comprei esses livros para ele porque, vencidas as confusões mercuriais entre autor e obra, o texto de Wallace é uma profissão de fé no poder do combate intelectual. Ler é sobre compreender o mundo, não sobre como se vingar dele. Aos perdidos cabe a perda, a nós cabe o equilíbrio, a solidariedade infinita e a lucidez precisa. Nossa missão é perseguir a saída que os outros já abandonaram. Se preciso, temos que mudar o desenho dos mapas do caminho para reencontrar o caminho. Temos que construir um cotidiano que diga todos os dias aos que vieram depois: Godot sempre esteve aqui. 

Dizem que chove muito em Porto Alegre, na época da Feira do Livro, mas hoje vejo um sol imenso. Os jacarandás da Praça da Alfândega me fazem lembrar uma anedota que David Foster Wallace contou certa vez. Eu não sou bom em piadas, mas começa mais ou menos assim: há dois peixes na água: eu e você. 


Luiz Mauricio Azevedo é doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP e autor de Baldeação (editora de cultura).

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