Ensaio

“Não podemos nos distrair”

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“Não podemos nos distrair”

O governo Lula 3 logo completará 150 dias. Todos eles sob fogo cerrado da direita, apoiadora do ex-presidente, pressionado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e na mira dos inimigos (ou adversários) íntimos. Exatamente como muitos de nós, democratas, prevíamos. É difícil antever mudanças imediatas neste cenário. Políticos, de direita ou de esquerda, focam nas próximas eleições municipais e gerais. Agem para reforçar sua própria imagem e desgastar a dos opositores. Pior: a direita nacional, com apoio da internacional, do mercado financeiro, do agronegócio, das plataformas digitais e de tantos outros setores da elite brasileira, persiste em sua intenção de impedir Lula de chegar ao fim do mandato.  

Extremistas, como Ricardo Salles, Damares Alves e Magno Malta, criam, desavergonhadamente, mentiras e novas narrativas nelas inspiradas. Um exemplo claro disto é a desinformação publicada, em 24 de abril, pelo ex-procurador, hoje deputado federal, Deltan Dallagnol (Podemos-PR) em suas redes sociais sobre o projeto da Fake News, chamado pela direita de projeto da censura. No Twitter, Facebook e Telegram, ele afirmou, sem pudor, que o Projeto de Lei 2630 bane das redes sociais alguns versículos da bíblia. “Até a fé será censurada se nós não impedirmos a aprovação do PL na Câmara”, mentiu.

As redes sociais se revelaram, em 2018, o principal veículo de comunicação dos extremistas. Como não têm regulamentação no Brasil, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Alemanha, são usadas, diuturnamente, para desinformar a nação. Aprovar o PL 2630 – Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet significa criar regras para o uso das redes, diminuir – impossível eliminar – as fake news, impedir os discursos de ódio, racistas, homofóbicos, fascistas, misóginos e golpistas. Assunto sensível, mas necessário para a manutenção da democracia e de um ambiente político menos radicalizado. 

Os parlamentares eleitos com votos bolsonaristas, é claro, são contra. O projeto de lei deveria ter sido votado no dia 2 de maio. Foi retirado da pauta a pedido de seu relator, deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), após uma campanha intensa e mentirosa apoiada pelas empresas de tecnologia, as big techs Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), Twitter e Alphabet (Google e Youtube). No fim de semana anterior à data marcada para a votação, o Google usou sua plataforma para afirmar que o projeto implantaria a censura no Brasil. Na segunda passada, 8, foi a vez do Telegram atacar o projeto. Enviou mensagem para seus assinantes dizendo que o projeto acabaria com a liberdade de expressão no país. Na quarta, 10, o Telegram apagou a mensagem mentirosa, por ordem do STF – Supremo Tribunal Federal.

O texto original de 2020, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), foi aprovado no Senado há três anos e modificado na Câmara, após consultas feitas pelo relator a partidos e deputados. Exemplo de mudanças: estende a imunidade parlamentar às redes sociais, exclui a exigência de as empresas estrangeiras terem sede no Brasil, inclui regras para a moderação de conteúdos, a ser feita pelos provedores. 

No início desta semana, Orlando Silva, na tentativa de ver o projeto aprovado futuramente, aceitou fatiar o PL. A remuneração de conteúdo jornalístico, utilizado pelos provedores, e o pagamento de direitos autorais a artistas não seriam mais discutidos pelo projeto das Fake News. Estes temas constariam do projeto 2370/19, da deputada Jandira Feghali (PCdoB/J), que trata dos direitos autorais. Não deu certo. Os aliados do governo só aceitam votar a urgência do projeto de Feghali se ele continuar tratando apenas dos direitos autorais. 

Finalizo a revisão deste texto no início da tarde de quarta, dia 10. Imagino que a guerra entre situação e oposição tenha seguido – talvez com algumas baixarias – pelo restante da semana e siga na próxima. Os conservadores e as big techs acharão formas de continuar espalhando mentiras sobre o PL. Vejo – posso estar errada – a votação da proposta sendo adiada e adiada.  

Ataque golpista 

A CPMI dos atos de 8 de janeiro será, como está sendo o projeto das Fakenews, o palco perfeito para os ataques dos parlamentares da Bancada BBB – do boi, da bala e da Bíblia – contra o governo Lula. Sem dúvida, a direita se dedicará, incansavelmente, a criar factoides que mantenham seus eleitores mobilizados e provoquem reações do Executivo. A CPMI do golpe é o picadeiro que a direita busca. Pitbulls, tipo Eduardo Bolsonaro, ensaiarão frases de efeito, ataques teatralizados e espetáculos deploráveis que estarão nas redes sociais, em manchetes de jornais, sites, rádios e TVs. É o que querem e o que precisam para chegarem vivos à próxima eleição presidencial. 

Enfrentar a direita e suas versões de fatos de uma só narrativa, como o ataque aos três Poderes, requer trabalho, dedicação e energias que deveriam estar sendo usados na solução dos problemas sociais vividos pela nação. A estratégia da direita é manter o governo permanentemente na defensiva, incapacitado de cumprir o seu programa e as promessas feitas durante a campanha. Lula, no entanto, é um político experiente. Já sobreviveu a momentos difíceis, como a perseguição da ditadura militar, os ataques da grande imprensa e à prisão de 580 dias. Vencer a direita e consolidar a democracia brasileira é, se não o principal, um dos principais objetivos de Lula 3. Para isto, carece da união de todos nós, democratas, sejamos ou não ligados a algum partido. Uma fissura mínima nesta base possibilitará o retorno dos que, no último quadriênio, destruíram, entre outros setores, o da educação e o da cultura. 

A oposição já definiu a sua narrativa: acusará o governo de leniência, de ter permitido a destruição do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do STF – Supremo Tribunal Federal. Também voltará ao velho mantra da esquerda infiltrada para incitar os ataques.

Pressão parlamentar

O Congresso impôs nas últimas semanas duas derrotas ao Planalto: o adiamento da votação do PL das Fakenews e a derrubada de trechos dos dois decretos do Executivo que mexiam no marco legal do saneamento. Partidários do governo Lula preveem que o Senado manterá o decidido pela Câmara.

A base aliada do governo – como todos sabemos ou imaginamos – é fluida. Mesmo partidos com representantes no ministério de Lula, como o União Brasil e o MDB, sentem-se livres para votar contra propostas do Executivo. E a oposição negará tudo que estiver fora de suas regras liberais.

Arthur Lira, apoiado por Lula e o PT em sua campanha para de reeleição à presidência da Câmara, não levantou um dedo sequer para impedir tais derrotas. Ele se empodera cada vez mais: nada passa pela Câmara sem o seu aval.

Em conversa com Lula no Planalto, Lira avisou que dar cargos ou ministérios aos partidos não assegura fidelidade. A aprovação de projetos só virá com a liberação de recursos para as emendas parlamentares. Voltamos ao toma lá dá cá. Não digo que falte comprometimento de todos os deputados para a solução dos grandes problemas brasileiros, como a fome. Mas a maioria só está interessada na sua reeleição. Para isto, precisa de recursos. Dinheiro para atender as reivindicações de seus eleitores.  

Disputas internas 

Nestes quatro meses e duas semanas de governo, Lula tem dançado de valsa a tango para enfrentar o perigo que o ronda e, ao mesmo tempo, debelar as brigas, ataques e insinuações de desafetos integrantes de sua equipe. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a primeira-dama, Rosângela Janja da Silva, pelo que leio e ouço, são os principais alvos do fogo amigo. Haddad por defender um plano econômico que não agrada a muitos petistas, incapazes de lavar a roupa suja dentro de casa, e Janja por influir em algumas decisões do marido, apesar de até agora não ter conseguido ser nomeada para um cargo voluntário, sem remuneração. 

Nesta semana, os meios de comunicação revelaram mais um ponto de discórdia: recém-empossado chefe do GSI – Gabinete de Segurança Institucional, o general Marcos Amaro anunciou ao mundo suas divergências com o ministro da Defesa, José Múcio, e com a Polícia Federal. O general é contra a PEC – Proposta de Emenda à Constituição, defendida por Múcio, que obriga militares, candidatos a algum cargo eletivo, a deixarem as Forças Armadas ou saírem da ativa. “Isso vai valer para outras carreiras de Estado? Se valer, eu concordo plenamente”, disse o general.

O general Amaro substituiu na chefia do GSI o general Marco Edson Gonçalves Dias, que pediu demissão após terem sido divulgadas imagens que o mostram no Palácio do Planalto, no dia 8 de janeiro, sem agir contra os golpistas. Amaro também mantém uma disputa com a Polícia Federal. Ele declarou ao Globo que a proteção de Lula pode voltar a ser feita por militares. A cúpula da Polícia Federal, por outro lado, deseja seguir responsável pela segurança do presidente e do vice.

Convenhamos que estes comportamentos são puramente desagregadores e dão munição ao grupo do candidato derrotado.

Para complementar este quadro, tenho lido e ouvido que alguns democratas, não ligados ao PT, reclamam que Lula esqueceu-se de ter vencido a eleição com uma aliança democrática. O presidente é recriminado por estar fazendo, segundo estes democratas, um governo voltado ao “PT raiz”, com propostas recusadas pelo Congresso.   

Meu amigo Carlos Bastos, jornalista que acompanha a política brasileira desde os anos 1950, acredita que as desavenças internas e alguns passos mal dados por Lula se devem à qualidade de seus conselheiros atuais, em comparação com os que estiveram ao seu lado nos primeiros dois mandatos. Bastos lembra que naqueles anos, Lula contava com a inteligência política de José Dirceu, Antônio Palocci, Aloizio Mercadante e outros, agora afastados do presidente. “Mercadante – segundo Bastos –, mesmo presidindo o BNDES, não está tão ligado a Lula como no passado”.

Perigo que segue

Nas últimas semanas de abril, três conhecidos nomes da cultura, política e academia nacional alertaram para a necessidade de os democratas continuarem atentos às ações dos golpistas. Chico Buarque, ao receber o Prêmio Camões, em Portugal, afirmou que, apesar da vitória de Lula, “não podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste no Brasil como um pouco por toda a parte”. O ex-governador Tarso Genro, em seu artigo “Gonçalves Dias e as lições do golpismo híbrido”, publicado em diversos sites, ressaltou que, no mundo contemporâneo, os fascistas “ora estão no poder e promovem guerras e armas, ora estão na oposição onde assediam a democracia liberal cansada”. Segundo o professor Francisco Carlos Teixeira da Silva, autor de O concerto das nações: conservadores, reacionários e fascistas (1833-1945), “há um golpe de estado em curso contra o governo do presidente Lula”. A afirmação consta do artigo “O golpe de Estado em curso”, também publicado em vários sites, e da entrevista dada à TV 247, do site Brasil 247. 

Teixeira da Silva acredita que a movimentação internacional de Lula “contraria, irrita e move as forças americanas para deslegitimar o governo Lula da Silva”.  No plano interno, diz o professor, “o núcleo político de Lula errou em encetar uma política de ‘normalidade’ democrática, mesmo após quatro tentativas de golpe de estado: em 7 de setembro de 2021, em 30 de outubro de 2022, em 12 de dezembro de 2022 e em 8 de janeiro de 2023”. 

Tarso Genro conclui seu texto em tom positivo, de esperança: “No que concerne à Segurança do Estado brasileiro – na sua dimensão interna e externa – a Guerra Híbrida terminou por fundi-las sem volta. E sem dúvida o 8 de janeiro é muito cristalino sobre isso: a falência do golpe foi a vitória da virtude e este tempo, que agora se abre, pode acalentar uma democracia renovada, que recoloque a esperança que a solidariedade, a igualdade e a Justiça, ainda tem lugar no coração de uma ampla maioria do povo brasileiro”.

Por tudo que foi dito aqui, fico com o Chico Buarque. Assino embaixo do seu alerta: “Não podemos nos distrair”. A direita não quer paz. Quer poder, já. Por isto, insiste no golpe. Mesmo que a prisão esteja logo ali, a um passo de distância.


Nubia Silveira – Jornalista

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