Ensaio

O que fazer?

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O que fazer? Foto: Naaman Omar/apaimages

Atônita, a comunidade internacional, seus governos, representantes diplomáticos, veículos de imprensa, populações e cada um de nós acompanhamos mais um sangrento e desesperador conflito entre Israel e Palestina. O espanto se deve tanto em função do grau de violência envolvida, posto que barbáries nunca deixam de assombrar, quanto pela sensação de se estar em uma encruzilhada na qual todos os caminhos para a paz parecem bloqueados. A consonância deste segundo sentimento com o cenário que se apresenta hoje é o que precisa ser analisado, pois daí se pode pensar na possibilidade de alguma saída para a espiral de mortes em curso já há tanto tempo.

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O conflito entre Israel e Palestina está inserido no contexto do Oriente Médio, uma das regiões mais complexas e relevantes do mundo, tendo em vista sua localização, riqueza cultural e importância econômica, derivada não apenas dos recursos energéticos existentes em alguns países, mas também por ser importante rota do comércio internacional. Dada tal realidade, uma abordagem sobre as dificuldades de se chegar a uma solução para o confronto demanda uma análise em diferentes níveis: bilateral, regional e global, e que isso seja tratado em duas temporalidades, a guerra em curso e a disputa que desde a década de 1940 já teve vários capítulos e milhares de mortes.

O nível bilateral envolve justamente Israel e Palestina. O cerne da questão. A guerra imediata deixa patente a diferença inegável de poder entre os dois atores. As lideranças palestinas não reúnem condições nem de proteger sua população, nem de trazer o adversário para uma mesa de negociações. Logo, a permissão de ingresso de ajuda humanitária em Gaza, um cessar-fogo ou o fim das hostilidades militares dependem de Israel. Por óbvio, a situação pode mudar de um dia para outro, mas com 20 dias de conflito, Israel não sinaliza disposição de adotar nenhuma medida de refreamento de suas ações bélicas, que ainda podem culminar com uma invasão terrestre.

Não há canal de diálogo, e este ponto nos remete à temporalidade mais extensa do conflito. Desde o assassinato de Yitzhak Rabin, cometido em 1995 por um jovem fundamentalista judeu, nenhum governo israelense procurou de forma efetiva retomar negociações com as lideranças palestinas não vinculadas a atos violentos. Benjamin Netanyahu, em especial, nunca considerou seriamente tal possibilidade. Quando a porta do diálogo é fechada pelo lado mais poderoso, as lideranças do lado mais fraco dispostas ao debate perdem credibilidade entre seus apoiadores, pois sua estratégia pacifista tem sua legitimidade questionada. O governo de Israel declara que pretende terminar com o Hamas. A história de disputas semelhantes demonstra que incursões e ataques militares podem exterminar lideranças do Hamas e de grupos assemelhados, mas, ao mesmo tempo, ao atingirem centenas ou milhares de pessoas inocentes, acabam por causar indignação e gerar novos seguidores de tais grupos, que serão lideranças futuras. A tarefa autoimposta por Israel o torna um Sísifo. Se a opção do diálogo não é valorizada pelas partes envolvidas, a violência vira a moeda de troca.

No nível regional, a política do Oriente Médio nunca foi simples. Identificações étnicas, religiosas, tribais e nacionais se entrelaçam. Israel identifica seus inimigos no grupo libanês Hezbollah e no Irã. Mas países relevantes da região, como Egito, Arábia Saudita, Jordânia e Qatar, elevam o tom de seu criticismo aos atos do governo israelense. Todos mencionam temer que a guerra acabe por ultrapassar as fronteiras de Israel e Palestina e atinja a região como um todo. Além disso, a identificação coletiva árabe vem sendo colocada em destaque pelos governantes dos países do Oriente Médio à medida que a causa palestina, que parecia esquecida nos últimos anos, vê renascer seu apoio entre as populações da região.

Neste recorte de conjuntura, os acordos de Abraão costurados pelos Estados Unidos entre Israel e países árabes sunitas estão sob ameaça. Ou seja, a guerra tem se mostrado prejudicial à posição de Israel, que localmente usufruíra de melhora nos últimos anos. Contudo, apesar de inequívocas em condenar os ataques à Gaza, as declarações dos chefes de Estado locais não parecem ter força para acabar com a guerra em andamento. O temor de uma escalada antes mencionado é mais forte que a indignação, e neste sentido, mesmo o Irã se mostra cauteloso.

Em última instância, a despeito das organizações internacionais e da retórica, o sistema internacional responde à lógica do poder. Assim, uma pressão superior que poderia levar a guerra atual ao seu fim e quiçá à construção da solução de dois Estados apenas funcionaria se fosse originada do nível global. Tal pressão poderia ocorrer de duas maneiras. Primeiramente pela ação das potências mundiais, individualmente ou em bloco. A outra alternativa é a ONU. No primeiro cenário, o equilíbrio de forças global e a história do Oriente Médio indicam que Israel poderia ser sensível a um ultimato vindo dos Estados Unidos, mas estes estão reafirmando mais uma vez sua posição de aliados incondicionais de Israel. Logo, se Washington pressionar Israel, posto que sua própria credibilidade na região está sendo abalada, isso ocorrerá a portas fechadas. No conflito atual, França e Inglaterra seguem os norte-americanos sem muitos questionamentos. A Rússia não pretende se indispor com israelenses nem com os países árabes, preferindo culpar os Estados Unidos pela crise. Já a China mantém um posicionamento discreto, quase silencioso. Quanto à ONU, as resoluções propostas por Brasil, Estados Unidos e Rússia nos últimos dias, não aprovadas por falta de votos ou por veto, escancaram mais uma vez que a sua estrutura da organização confere legitimidade e peso jurídico ao poder das potências que perfazem o grupo de membros permanentes do Conselho de Segurança. Via de consequência, ela se vê incapaz de solucionar temas de impacto da política global, caso interesses vitais dos membros permanentes, ou de seus aliados próximos, estejam em jogo. Se a ONU tem dificuldade de ao menos parar o conflito atual, que dirá negociar uma solução permanente para palestinos e israelenses. 

Portanto, infelizmente o quadro não é promissor. A guerra atual já ceifou a vida de milhares, feriu dezenas de milhares e traumatizou outras tantas pessoas. É possível que até que se consiga negociar um cessar-fogo, os números se tornem ainda mais estarrecedores. Quando o cessar-fogo ou o fim das hostilidades ocorrer, uma sensação de alívio será uma das primeiras reações, pois o número de mortos diários cairá e os hospitais conseguirão voltar a operar menos precariamente. Todavia, tal sentimento virá acompanhado de questionamentos. Como será a vida em Gaza a partir de então? Como ocorrerá a reconstrução do que foi destruído? Será possível construir uma percepção mínima de normalidade na Palestina? E em Israel? Pensando nas duas temporalidades, resta claro que a sucessão de guerras ao longo das décadas revela que, sem uma solução concludente para a situação de Israel e Palestina, daqui a algum tempo um novo conflito emergirá.

A comunidade internacional precisa deixar o seu torpor e pensar seriamente na construção de um cessamento definitivo para o conflito, o que passa pela solução de dois Estados efetivamente soberanos e livres, algo que nunca ocorreu. Mas para tanto, é preciso haver um debate sério sobre o tema, que envolva negociações para responder questões candentes como estas, por exemplo: Como fazer que os dois governos concordem com a existência mútua e soberana? Quais seriam as fronteiras atuais dos dois Estados, tendo em foco que todos os mapas históricos já foram sensivelmente alterados? Como garantir o retorno dos milhões de refugiados que vivem em outros países? Governantes, organizações internacionais e analistas não possuem respostas para estas ou outras perguntas capitais que certamente surgirão se uma solução for negociada. Mas antes de se debruçar sobre as dúvidas, é preciso criar condições para que uma negociação ocorra.

Pensando de modo otimista, talvez a violência atual gere um sentimento global de basta de mortes entre palestinos e israelenses. A dificuldade presente de obter um cessar-fogo não permite muito otimismo, mas não temos o direito de perder a esperança de imaginar uma solução, e nesse sentido a opinião pública mundial e sua capacidade de pressionar seus próprios governos pode ser o caminho mais viável, mesmo que seja lento, como foi no caso do fim do Apartheid na África do Sul.   


Gabriel Adam é professor dos cursos de Relações Internacionais da ESPM-Sul e da Unisinos. É Doutor em Ciência Política pela UFRGS. 

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