Ensaio

Os que ficam e os que escolhem ficar

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Os que ficam e os que escolhem ficar Foto: Daniel Scandolara

Muita coisa muda em dois anos. Procurei por meus antigos amigos: a maioria não está mais lá. Como tem sido comum há algumas gerações, os jovens em condições deixam o país em busca de perspectivas profissionais mais vantajosas em países onde a diáspora está organizada e estruturada, como França ou Estados Unidos. Contudo, inegavelmente, há sempre os que ficam e os que decidem fazer o caminho inverso. 

Kolya Stepanyan é um armênio que fez o caminho inverso. Deixou Moscou, onde nasceu e onde vivia, pensando a realidade ‘‘como um russo e em problemas russos’’ e se mudou para a Armênia. Ele, porém, queria ir além, e voltar à terra de seus pais não era o ponto final, mas o ponto de partida. Com a desaprovação absoluta de seus genitores, voluntariou-se para servir ao exército armênio, mas como nunca teria a aprovação de sua família, apresentou às autoridades militares passaportes expirados de seus pais, os quais Kolya tomou sem que eles soubessem. Tudo isso para comprovar sua origem, já que como ‘‘não-nacional’’ ele não necessitava prestar o serviço militar obrigatório nas forças armadas armênias. Depois de ser rejeitado por possuir um problema físico, arrumou novo jeito: fez uma cirurgia para corrigir a ‘‘falha’’ e se apresentou novamente. 

Talvez tenha sido sua insistência que o fez ser finalmente aceito. Foi posto para servir em uma zona próxima a Artsakh e estava em serviço quando a guerra de 2020 começou. Depois que as posições de controle armênio foram se esvaindo, ele e outros cinco companheiros1 ficaram ilhados entre as linhas inimigas azeris. Rapidamente, toda a comunicação com o comando foi perdida, e dali em diante, por 70 dias, todos na Armênia imaginaram que eles estivessem mortos. Talvez apenas o maior dos otimistas tivesse fé que eles estavam vivos durante todo esse período, indo de vila em vila abandonada e escondendo-se em casas de famílias armênias destroçadas pela guerra. Depois de 70 dias, em que a maior de todas as leis foi o silêncio, já que o mínimo barulho seria mortal, Kolya e seus companheiros foram resgatados quando buscavam atravessar a fronteira com o Irã.

Sua história se tornou conhecida na Armênia. Após ter me visto apenas uma vez, recusou meu convite para um café e me convidou para visitar sua casa, onde ele faria o jantar. Kolya cozinhou um prato armênio chamado Ghapama, o qual consiste, basicamente, em uma abóbora assada inteira com arroz em seu interior. 

– Sabe, houve um período em que, quando estávamos escondidos em uma das casas abandonadas, havia muitas abóboras nas redondezas. Como precisávamos comer, Ghapama se tornou a especialidade. 

Eu não sabia, mas tinha sido convidado à sua casa em uma ocasião completamente especial para ele e seus companheiros: era aniversário do dia em o resgate foi feito, por isso o Ghapama foi cozinhado. Quase um mês depois, quando soube que estava chegando meu momento de partir, Kolya me convidou para tomar um café. Tive de perguntar se ele se arrependia da decisão que tomou – parte de suas pernas foram amputadas devido à gangrena: 

– Não. Eu fiz tudo que eu queria fazer. Faria de novo. Muitos me chamavam de ‘‘louco’’ por querer servir ao exército enquanto jovens de dezessete, dezoito anos eram obrigados a fazê-lo – e tudo o que eles queriam fazer era escapar daquilo. Mas não era assim que eu via as coisas, era algo que eu sentia que tinha que fazer. O que me fazia melhor do que eles? 

Servir ao exército por obrigação numa idade da vida em que você está provavelmente pensando em sair com os amigos ou se vai ou não convidar aquela pessoa para um encontro é uma coisa. Fazer isso, nestas condições, em um país que é ameaçado constantemente por vizinhos hostis e onde um alistar-se como militar pode realmente significar morrer no dia seguinte, é outra. Por aí se desvela talvez a mais crua face da guerra, e quanto mais longe dela estamos, aparentemente menos entendemos de fato tudo o que ela implica. 

Michael, amigo que fiz no dormitório em que vivi em 2021, é natural da cidade de Martuni, em Artsakh. Martuni passou a estar indissociavelmente ligada à figura de Monte Melkonian, herói nacional da Armênia, o qual liderou a segurança da cidade durante a Primeira Guerra de Artsakh. ‘‘Mike’’, como também é chamado, ri e sorri facilmente, e é o tipo de pessoa que não poupa esforços para encontrar-se com quem gosta. Em meu primeiro domingo em Yerevan depois do retorno, atravessou a cidade para me fazer companhia pelo centro durante poucas horas, nada mais. Observou-me durante meu almoço e reparou que, às vezes, minhas mãos tremiam:

– Você tem problemas de ansiedade? 

Respondi que sim. 

– Antes da guerra eu não tinha, mas agora minhas mãos tremem o tempo todo. Mas é algo que vou superar. 

Mike lutou na II Guerra de Artsakh, com cerca de vinte anos de idade: estava entre os tantos e tantos jovens que Kolya avistava nos batalhões. Após os eventos de 2020 e a completude do genocídio em 2023, Martuni e a República caíram em mãos azeris: as marcas dos milênios de autoctonia armênia estão fadadas a serem eliminadas em um piscar de olhos – olhos acompanhados por um deletério sorriso. 

Desde que nos conhecemos, portanto já depois da guerra, Michael nunca havia comentado sobre Artsakh ou sobre o conflito até notar o tremor de minhas mãos. Algum tempo depois, pela segunda e última vez, pude ter a percepção mínima da profundidade e das agitações emocionais que significam a realidade, cada vez mais real, de nunca mais poder colocar o pé em sua cidade e em seu país, aquele pequeno lugar onde, lá pela metade da primeira década do século XXI, aprendeu a jogar bola, andou pelos montes com amigos conhecidos desde o ventre materno, e teve seus primeiros amores:

– Eu não sei como explicar esse sentimento. É um dos piores sentimentos, se não o pior.

Michael é feliz por estar vivo, por sua família estar segura, e por ele seguir seus estudos em Yerevan. Ele não precisou passar pelo terror adicional provocado em setembro de 2023: entre as cerca de cem mil pessoas expulsas de Artsakh, seus familiares não constavam. Mas os de Aren, outro amigo comum dos tempos de dormitório, sim. Aren nunca comentou como foi todo o processo, apenas que tudo foi ‘‘extremamente estressante’’ até conseguir fazer com que sua família chegasse segura a Yerevan. Imagino que essas duas palavras já são suficientes para imaginar tudo o que ele temeu a partir do momento da primeira explosão nos arredores de Stepanakert2.

Imagine que você tenha perdido tudo. Não simplesmente suas posses, mas o tempo de vida inerente a tudo aquilo que, pelas suas mãos, fez-se florescer por meio de carinho, amor e devoção ao pedaço de mundo onde as gerações que levaram à sua existência sempre estiveram. Imagine que terceiros, armados até os dentes, tenham lhe forçado à dor de abandonar esse tempo de vida e, ainda que isso já aparentasse demais, também não pouparam um grama do peso de jogar em suas costas o desespero torturante de não se saber para onde ir e do que será de seu futuro. Imagine que, além disso, estes mesmos terceiros não somente desejaram destruir seu lar e sua existência, mas suas memórias e seu significado, aquelas coisas que, aparentemente, o homem não pode acessar e destroçar. Apagar tudo, não deixar nada. Foi assim em 1915, quando o Genocídio Armênio começou; foi assim em 2023. 

Agora imagine que você sobreviveu e chegou a outro país, onde foi minimamente acolhido. Imagine ter de recomeçar a vida do zero, talvez por volta de seus cinquenta anos de idade, com filhos, esposa ou esposo, pais ou até avós, como dependentes dos seus passos. Imagine ter de viver, sem saber até quando, de assistência social, enquanto se lembra com clareza que, ‘‘lá em casa’’, não lhe faltava nada e você não dependia de ninguém. Imagine que a assistência social não é ideal e doações de apoio social são indispensáveis. Todo seu parco dinheiro é milimetricamente contado, nada pode ser desperdiçado, luxos são delírios. 

Encontramos muitíssimas pessoas nessa situação durante as ações da UGAB3. Entretanto, um certo dia, enquanto entregávamos aquecedores nas redondezas de Gyumri, uma senhora adentrou o salão de entrega improvisado para recolher seu aquecedor. Antes de qualquer coisa, antes mesmo de assinar seu nome na tabela de recebedores ou de coletar sua doação, ela abriu sua bolsa e retirou uma caixa de bombons que havia comprado para nós. Poderíamos simplesmente dizer que esta era sua forma de agradecer, mas não: esta era sua forma de ser – e nenhuma situação no mundo a faria mudar isso. 

Decolei de volta para o Brasil sem saber a resposta do que é a Armênia ‘‘real’’ e, verdade seja dita, não tenho mais interesse em uma explicação. Hoje, entendê-la me parece muito mais importante e interessante que explicá-la – e entendê-la passa, inegavelmente, por aquela dócil senhora de Artsakh e sua caixinha de bombons.


Notas
1 –  O grupo originalmente consistia em 21 pessoas, mas ele optou por se dividir em três partes.
2 – Capital da República de Artsakh.
3 – União Geral Armênia de Beneficência, formada no atual Egito, no início do século XX. É a maior instituição de auxílio, suporte e fomento da causa armênia pelo mundo, com diversos escritórios pelo mundo, inclusive no Brasil.


Daniel Lorenzo Gemelli Scandolara nasceu em Porto Velho, Rondônia. Atualmente doutorando pela UFRGS, morou a maior parte da vida em Brasília, onde obteve graduação em Ciência Política e mestrado em História, ambos pela UnB. Posteriormente, concluiu mestrado em Direitos Humanos e Democratização pelo Campus Global em Direitos Humanos Cáucaso, tempo em que viveu na Armênia. É autor do livro Um Estopim em 1914: a política britânica em relação ao Império Otomano e sua preservação e criador do blog Torto em Linhas Retas. Gosta de histórias.

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