Ensaio

Os Voluntários de 24: algumas reflexões sobre a solidariedade durante a tragédia a partir de uma perspectiva histórica

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Os Voluntários de 24: algumas reflexões sobre a solidariedade durante a tragédia a partir de uma perspectiva histórica Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Essas reflexões são feitas no calor da hora, na cidade de Porto Alegre, ainda com parte de seu território submerso pela catástrofe socioambiental que afligiu o Rio Grande do Sul desde os primeiros dias de maio de 2024. Além das imagens da catástrofe e o panorama de destruição das cidades pelas cheias dos rios, chamaram atenção as diversas ações de solidariedade efetivadas desde as primeiras horas do evento. Com efeito, um dos temas mais recorrentes nos meios de comunicação e nas conversas cotidianas foi o grande movimento de pessoas que se dispuseram a ajudar como voluntários e voluntárias, atendendo as pessoas atingidas. As imagens mais fortes vinham das ações de salvamento a partir dos barcos e canoas que entravam dentro das ruas inundadas para buscar quem estava ilhado, mas esse movimento de voluntariado também incluía as pessoas nas cozinhas produzindo marmitas, o trabalho de suporte aos abrigos e o esforço de arrecadação de donativos. Neste texto, bastante seminal, pretendo analisar alguns discursos sobre os voluntários e tento compreender (algumas) das origens remotas deste movimento.     

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De antemão, já podemos afirmar que este é um dos piores momentos que Porto Alegre já passou na sua história. Podemos pensar em três outros contextos tão graves quanto este, até mesmo em situações de guerra. O primeiro momento é marcado pelas consequências da invasão espanhola à Capitania do Rio Grande de São Pedro, em 1763, que transformou a pequena freguesia do Porto dos Casais em um campo de refugiados situado na fronteira entre dois impérios beligerantes; a segunda foi o cerco dos revoltosos farroupilhas entre 1837 e 1841, quando a cidade ficou restrita e entrincheirada na sua região central, com a população submetida à escassez e a bombardeios durante quatro anos e a terceira foi o contexto da grande cheia de 1941, quando a calamidade climática coincidiu com o contexto da Segunda Guerra Mundial e com diversas restrições (e perseguições) às comunidades imigrantes durante o período do Estado Novo. 

Assim como em outras conjunturas, a crise socioambiental, consumada na inundação de diversos bairros, não está restrita a um único fator ou causa. A cidade que sofreu a inundação de maio de 2024 já vinha sofrendo uma série de problemas (e traumas) nos anos anteriores. A pandemia de Covid-19, por exemplo, foi particularmente cruel em Porto Alegre: no mês de março de 2021, o jornal New York Times caracterizou a capital gaúcha como o “coração de um colapso monumental no sistema de saúde do Brasil”, em um momento em que o próprio país era considerado o centro mundial da epidemia. Junte-se a isso, temos as duas últimas administrações municipais, de Nelson Marchezan Jr. do PSDB, entre 2017 e 2020 e de Sebastião Melo do MDB, entre 2021 e 2024, que se caracterizaram pelo conservadorismo, pelo neoliberalismo e pelo desmonte das estruturas públicas. O Governo Estadual está nas mãos de Eduardo Leite, do PSDB, desde 2019, também caracterizado pelo neoliberalismo e pela preferência por soluções privatistas. Essa combinação tem relação direta com os efeitos da calamidade, já que a legislação ambiental do Estado sofreu uma forte desregulamentação; e no caso de Porto Alegre, o Departamento de Águas Pluviais (DEP) foi extinto e o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE) sofre um estrangulamento de recursos à espera de uma privatização. Não à toa, à medida que a água vai baixando, surgem pichações nos móveis deixados nas sarjetas das ruas que acusam: “A Culpa é do Melo” e a “A Culpa é do Leite”. 

Durante as primeiras semanas do evento climático, se desenharam algumas narrativas não apenas sobre a catástrofe em si, mas também sobre a maneira como a sociedade reagiu à catástrofe. Elas têm alguma relação com o intenso movimento de voluntariado que agitou a cidade de Porto Alegre (assim como outras cidades atingidas pelas cheias), que mobilizaram pessoas de diversas origens e classes sociais em ações de salvamento, de doações, de trabalho e cuidado nos locais onde as vítimas estão abrigadas. A mobilização pelo voluntariado é um movimento concreto, massivo e observável em diversas partes de Porto Alegre. Uma das principais frases que marcam esse movimento é o slogan “O povo pelo povo”, que evoca a solidariedade das pessoas envolvidas na ajuda àqueles que sofreram as perdas. A partir daí vem se construindo algumas análises divergentes sobre o fenômeno, que podemos enquadrar como um discurso de esquerda, um discurso liberal e um discurso conservador.

O discurso de esquerda se apoia na premissa da ação popular, na disposição de trabalhadores e trabalhadoras, de diversas organizações sociais, de ajudarem-se mutuamente nos bairros e vilas onde moram; além disso, muitos que servem como voluntários são filiados a sindicatos, partidos de esquerda e movimentos comunitários, o que reforçara a ideia de uma rede de apoio baseada na solidariedade. O discurso liberal parte da perspectiva das ações individuais, do surgimento espontâneo do voluntariado e no espírito empreendedor de algumas pessoas que agem de forma abnegada, porque o Estado não teria condições de ajudar e inclusive atrapalharia a ação positiva da sociedade civil. Um terceiro discurso, bem mais conservador, se descola dos dois primeiros e investe na necessidade de segurança durante a calamidade. Na vigência da inundação, foram registradas tentativas de arrombamento de casas e estabelecimentos comerciais, assim como roubos de voluntários e casos de violência nos abrigos, o que deu ensejo a um discurso que identifica o uso da força repressiva como uma das ações mais necessária durante a tragédia. Neste discurso, o voluntário surge como um sujeito que deve ser protegido ou que deve fazer uso da força na defesa da ordem. Além destes discursos mais ou menos identificáveis, também temos uma grande quantidade de Fake News espalhadas pela extrema direita, que procuram disseminar medo e desinformação pelas redes sociais, mas aqui não vou me ater a esse fenômeno específico.  

Estes discursos não tem contornos plenamente definidos e na boca das pessoas, podem se mesclar até mesmo em seus aspectos mais contraditórios. O discurso do “Povo pelo Povo” (em minha opinião) tende a ser abandonado pela direita liberal no longo prazo, até porque os agentes omissos do Estado com que este discurso dialoga são justamente do PSDB e do MDB. Assim, o campo da esquerda deve aprofundar a relação de suas bandeiras com as palavras de ordem da solidariedade e da ajuda mútua encarnado pelo movimento do voluntariado. Quanto ao discurso do uso da força, existe a possibilidade de ele ser reforçado pelo campo da direita política e inclusive ser apropriado por determinadas figuras públicas. De qualquer forma, o tema dos voluntários e do voluntariado talvez perca centralidade na arena política nos próximos meses, pois, com a constituição de um Ministério Extraordinário pelo Governo Federal e de uma Secretária pelo Governo Estadual, é provável que os debates passem a girar em torno da administração da crise pelas diferentes esferas de poder. 

Mesmo que o movimento de voluntários perca força nos próximos meses, à medida que as águas baixarem e as pessoas encontrem uma nova moradia, o tema do voluntariado durante as cheias de 2024 ainda vai ser pano de fundo de muitos debates e discussões públicas, inclusive pela memória das pessoas que participaram dele e que foram ajudadas por ele. Vou tentar desenhar uma hipótese para explicar o sucesso desse movimento, mas ela é necessariamente impressionista e provisória. Antes de entrar nesta hipótese, aviso que vou centrar minha análise em Porto Alegre; também vou me ater ao movimento do voluntariado local, mesmo sabendo da enorme importância que tiveram (e ainda estão tendo) a grande quantidade de brasileiros e brasileiras de todos os estados da Federação que vem para o Rio Grande do Sul nesta hora tão difícil para ajudar suas irmãs e seus irmãos gaúchos. 

A palavra voluntário e voluntariado muitas vezes evocam a percepção de uma ação de solidariedade espontânea (confundindo-se, em uma interpretação vulgar, com voluntarismo). No caso da crise porto-alegrense, os meios de comunicação de massa repetiram muitas vezes a história de pessoas que saíram de suas casas e procuraram ajudar de alguma forma, como um movimento de impulso próprio. No entanto, as pessoas que entraram nesse movimento se mobilizaram e consolidaram suas ações a partir uma rede associativa pré-existente. Muitos membros de clubes, sindicatos, templos religiosos, escolas, universidades, associações de bairro e grupos de estudantes usaram de suas redes de contato e da estrutura de suas entidades para organizar seu trabalho voluntário. Isso pode ser observado na abertura de alguns dos maiores abrigos, pontos de coleta e cozinhas solidárias. Se observarmos alguns destes locais, que foram espaços abertos por associações e instituições, isso fica um pouco mais claro: a Sociedade Ginástica Porto-Alegrense (SOGIPA), a Escola Mesquita, o Sindicato dos Gráficos, a Igreja Pompéia, a Casa do Estudante Indígena, a Igreja Batista Central, a Escola de Samba Fidalgos e Aristocratas, o CTG Estância da Rubem Berta, Centro Espírita Afro Umbandista Ogum e Iansã… Na imensa lista de locais, o que mais se destacam são os espaços educativos, religiosos, culturais e comunitários. Mesmo aqueles que atuam em instituições públicas, como escolas e universidades, também se organizam muitas vezes a partir de uma rede associativa, como o movimento estudantil, as entidades sindicais, os grupos de pais e mães de alunos, etc.

A cidade de Porto Alegre teve sua história marcada por uma forte tradição associativa: durante a Primeira República (1891-1930), quando a capital gaúcha passou por uma explosão populacional, puxada pela migração interna e pela imigração estrangeira, pelo crescimento da indústria, do comércio e dos serviços, o associativismo popular expandiu-se junto com a malha urbana. Este foi o momento de florescimento dos clubes esportivos, dos sindicatos, das associações étnicas de imigrantes e dos clubes sociais negros, além de uma série de entidades políticas que faziam a mediação dos grupos populares com o governo do Partido Republicano. Essa riqueza associativa atravessou a Revolução de 1930 e os momentos difíceis do Estado Novo, chegando à chamada “República Populista” (1945-1964), alimentando as mobilizações trabalhistas e a luta pelas reformas de base. No final da Ditadura Militar, essa rede associativa foi reativada, através do novo sindicalismo, do surgimento do Partido dos Trabalhadores e do Partido Democrático Trabalhista, tendo uma expressão especial na União das Associações dos Moradores de Porto Alegre, que aglutinava as diversas associações de bairro. Durante os governos da Frente Popular (1988-2004), essa força associativa e organizativa foi orientada para a atuação no Orçamento Participativo. Nas últimas duas décadas, a cidade passou por momentos em que a lógica do liberalismo atacou os sentidos da ação coletiva, mesmo assim, tivemos em diversos momentos grandes ações coletivas (como em junho de 2013 e nos anos seguintes) que buscavam ocupar os espaços públicos a partir da crítica da privatização da cidade e dos serviços prestados à população.   

Apesar de ainda vivermos a longa noite do neoliberalismo na cidade de Porto Alegre, muitas das entidades e associações surgidas em período anteriores continuam vivas e muitas outras surgiram nos últimos anos. Ao sobrevir a tragédia, a velha tradição associativa, baseada na cooperação e na solidariedade, ressurgiu através da mobilização de associados e da abertura dos espaços das mais diversas entidades sociais. Nos piores momentos de dificuldade, Porto Alegre se reencontrou com uma de suas principais marcas: a de se juntar para ajudar, mobilizar e proteger. Mesmo que não saibam, os Voluntários de 24 são herdeiros desta tradição. 


Frederico Bartz é mestre e doutor em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e trabalha como técnico em assuntos educacionais nessa mesma universidade, onde coordena o curso de extensão Caminhos Operários em Porto Alegre.

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