Ensaio

Poesia em alta?

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Poesia em alta? Reprodução / site: poesiatraduzida.com.br

Tive um professor que sempre falava numa suposta “bolsa de valores” literária, na qual autores, obras e gêneros inteiros passavam por fases de alta ou de baixa nos pregões insondáveis do prestígio literário. Acompanhando as mais recentes premiações, percebe-se que a poesia tem se destacado como há tempos não ocorria. Tanto é assim que o La Vanguardia publicou em seu caderno de cultura, em dezembro passado, uma reportagem intitulada “Por que os poetas ganharam tudo em 2020?”. Nela, o jornal catalão questiona se estaríamos diante de uma nova percepção social da poesia e se o confinamento causado pela pandemia teria influenciado esse fenômeno.  

Pois vejamos: em 2020, a poeta norte-americana Louise Glück abocanhou o Nobel de Literatura, o prêmio Princesa de Astúrias foi para a canadense Anne Carson e o Cervantes, para o poeta valenciano Francisco Brines. Isso sem falar na repercussão mundial da performance da jovem poeta Amanda Gorman na posse do presidente norte-americano John Biden, quando apresentou o seu poema “The Hill We Climb”. Em relação às premiações, no Brasil não foi diferente: a mais recente edição do Jabuti, de nº 62, destacou a poesia nas categorias livro do ano e tradução. Na primeira, venceu Solo para vialejo, da poeta Cida Pedrosa, e como melhor tradução, Poesia, de Bertolt Brecht, por André Vallias (Perspectiva, 2020). No ano anterior, Sobre isto, poema de Maikóvski traduzido integralmente do russo por Leticia Mei (Editora 34, 2019) havia levado o troféu.

Voltando a 2020, o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional foi concedido à tradução de Júlio Castañon Guimarães de As flores do mal, de Charles Baudelaire (Editora Penguin Classics/Companhia das Letras). O ano pandêmico já havia trazido excelentes lançamentos quando, no apagar das luzes, surgiu o primeiro tomo da Poesia completa de Emily Dickinson, um calhamaço bilíngue de 883 páginas em tradução de Adalberto Müller. O livro foi lançado numa parceria entre a Editora da UnB e da Unicamp e, em menos de seis meses, já estava com a primeira impressão de mil exemplares praticamente esgotada. Seguindo o ritmo, 2021 começou com lançamentos de obras como Arte poética, de Horácio (Autêntica), traduzida por Guilherme Gontijo Flores; Feitiços (charmes), de Paul Valéry em tradução de Álvaro Faleiros e Roberto Zular (Iluminuras), além de uma antologia de Rimbaud por Afonso Henriques Neto (7Letras). 

No contexto brasileiro, tem igualmente surpreendido certa retomada da publicação de traduções de poesia de língua alemã, que alcançou a marca de pelo menos 12 títulos entre 2010 e 2020, recuperando espaço. Para se ter uma ideia, na década imediatamente anterior, apenas oito títulos foram publicados. Entre os destaques, além do já mencionado Poesia de Brecht, Claudia Cavalcanti traduziu a austríaca Ingeborg Bachmann em O tempo adiado e outros poemas (Todavia, 2020); Myriam Ávila lançou Eu nunca fui ao Brasil, do também austríaco Ernst Jandl (Relicário, 2019), e Daniel Martineschen traduziu o Divã ocidento-oriental, de Goethe (Estação Liberdade, 2020).  E agora, no final de abril, foi anunciado o lançamento de A rosa de ninguém, um dos principais livros de Paul Celan, traduzido por Maurício Mendonça Cardozo (Editora 34).

No que diz respeito à poesia japonesa, a editora de Porto Alegre Bestiário/Class foi responsável sozinha por vários lançamentos recentes, como a antologia Cem poemas de cem poetas (2019), traduzida por Andrei Cunha, Todos os haicais, de Ryōkan Taigu (2020) em tradução de Roberto Schmitt-Prym, e Isso não é arte, de Kobayashi Issa (2019), em tradução de Ricardo Silvestrin. Vale lembrar que o Brasil já conta desde 2017 com a publicação dos haicais completos de Matsuo Bashô, em tradução de José Lira (tradutor também de Kobayashi Issa). 

Pequenas editoras, como a Demônio Negro, de Vanderley Mendonça, e a Galileu, de Jardel Dias Cavalcanti, vêm publicando diversos livros e plaquetes de poesia traduzida, com destaque para diversas traduções de Augusto de Campos, que segue muito ativo aos 90 anos. A tendência dos financiamentos coletivos, ou “vaquinhas”, também parece que chegou para viabilizar novas empreitadas no campo da poesia traduzida. O projeto de publicação de A mulher forte e outros poemas, de Gabriela Mistral, da editora Pinard, superou a meta de arrecadação inicial em 27%, com um total de 979 apoiadores em 2020. A editora Urutau também adotou o financiamento coletivo para viabilizar o livro Oriente, obra de 800 páginas com poesia clássica chinesa dos primórdios ao século XVIII e poesia clássica japonesa entre os séculos VII e XX, incluindo uma antologia de haikai, em tradução do poeta Thomaz Albornoz Neves.

Admito que a “alta” da qual falo neste artigo, pelo menos no Brasil, não está necessariamente refletida no número das tiragens ou de lançamentos, que já foi maior em outros tempos. (Segundo o acompanhamento das publicações que faço*, o auge da publicação de poesia traduzida no Brasil ocorreu nos anos 2000. Na década que se encerrou, retrocedemos a números semelhantes aos dos anos 1980.) Aliás, porque a poesia não se adapta a lógicas de mercado, Augusto de Campos afirmou certa vez que “os poetas são os sem-terra culturais”. Assim, o critério de avaliação aqui é a relevância e a diversidade dos projetos, que obviamente não são best-sellers, mas circulam entre um público leitor muito especial e impactam na poesia que é feita no país. Muitas das edições de poesia traduzida são fruto de elaboradas e longas pesquisas, edições esmeradas, que além do trabalho tradutório propriamente dito trazem um rico material iconográfico, notas de tradução e estudos bem fundamentados. Por isso ganham prêmios.Mas em que sentido esta suposta “alta” ou retomada de certo prestígio da poesia provoca surpresa? Diria que é porque, no contexto da perda de prestígio da literatura em geral, a poesia costuma ser o mais negligenciado entre os gêneros, principalmente quando o parâmetro estabelecido é o mercado. E, também, porque é, por excelência, o gênero que bebeu e ainda bebe no discurso da crise. Conforme o professor e poeta Marcos Siscar, “historicamente, o que chamamos de poesia moderna é um discurso que se alimenta da crise para reinventar o seu papel dentro da cultura”. Octavio Paz falava em “tradição da ruptura”. O fato é que a poesia está viva, correndo como um rio, às vezes subterrâneo, alheio à lógica do consumo, circulando em pequenas edições; às vezes na superfície, vivendo no slam ou na letra da canção popular… O crítico Italo Moriconi, figura sempre muito atenta ao que ocorre na cena poética, afirmou recentemente que a poesia escrita por mulheres, o slam, as linguagens afro-brasileiras e a poesia traduzida são as linhas de força do panorama poético brasileiro neste início de século. Enfim, está viva e passa bem.


Marlova Aseff – Professora do Bacharelado em Letras Tradução Espanhol na UnB e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET/UFSC). Mantém desde 2016 o site Poesia Traduzida no Brasil, no qual estão catalogados atualmente 790 títulos publicados no Brasil a partir da década de 1960.

*Ver o site www.poesiatraduzida.com.br

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