Ensaio

A astúcia brasileira (Parte 5)

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A astúcia brasileira (Parte 5) Ruy Guerra, Calabar e o Império Colonial Passei o ano todo de 2018, mais parte de 2019, em Portugal. Fui escrever um livro sobre um sociólogo português, Hermínio Martins. Nascido em Lourenço Marques, hoje Maputo, Hermínio foi contemporâneo de Liceu do cineasta, dramaturgo e também compositor de canções Ruy Guerra. Também nascido em Moçambique, num período em que este país era uma das colônias de Portugal.  Ambos impedidos de voltar para Lisboa após a formação ginasial por conta da perseguição política da PIDE, a polícia política do Estado Novo Salazarista. Eram outros tempos, ou nem tanto, talvez movimentações dos mesmos tempos, das mesmas ondas de aberturas democráticas e regimes autoritários em que vivem Brasil e Portugal.   Quando houve a Revolução dos Cravos, a revolução democrática de 74 em Portugal, o Brasil estava na pior fase da sua horrenda ditadura civil-militar. Antes disso, alguns anos apenas, Hermínio escrevera um texto sobre a política em Portugal no ano de 1968, e se espantara com o fato de os países em língua portuguesa estarem naufragando em mares revoltos, sem terra à vista, amparo, mínima luminosidade. Éramos ambos Estados vivendo sob a égide de regimes autoritários, com polícia política, desaparecidos, torturas e encontros insidiosos, nem tão secretos, entre os tremores da sacristia e os temores da carne atravessada, o nervo contraído, o gozo obscuro pela morte e pelo obscurantismo.  Dizia-se, aliás, no pensamento português, das conferências democráticas, com Eça de Queiroz e Antero de Quental até o racionalismo límpido e cristalino de Antonio Sérgio, que a bondosa e tumultuada terra lusitana fora marcada desde o seu nascedouro pelos mesmos movimentos de abertura e regressão, de sintonia com o espírito do mundo e fechamento obscurantista terrível e inquisidor. Do senso de medida e equilíbrio belo das formas de racionalidade à grandeza mítica, ou mitopoética, do Portugal das grandes navegações, passava-se, por vezes num átimo, para a pequenez cheia de corcundas, luminosidade baixa, gosto pelo monstruoso e pelas zonas sombrias da Contra-Reforma e da Inquisição. Estes movimentos enigmáticos do espírito se encontram, e voltamos ao nosso personagem inicial, na trajetória curiosa de Ruy Guerra. Vejam só. Ruy Guerra não volta a Lisboa e segue ao Brasil. Estamos falando de um período próximo ao fim dos anos 50. O país está ali, em sua plena forma. A vanguarda concretista, a Bossa Nova, Brasília, a USP, o Cinema Novo, Niemeyer e Tom Jobim. A esquerda cultural, amiga das vanguardas e compromissada com o povo. O país estava surpreendentemente inteligente. Clareza das formas, espírito de invenção, racionalidade viva e culta. Mas foram poucos anos. Veio o período mais seco, a explicitação do conflito, ainda antes do golpe fatal, cuja forma fanstamasgórica continua vivíssima e tem ganhado ares tétricos atualmente. Das entranhas imundas e nada saneadoras do capitalismo internacional veio abril de 64, e o Brasil se viu, de repente, em uma ditadura militar, depois consolidada como regime autoritário através de uma série de Atos Institucionais, culminando no AI-5, que instaurou um Estado de exceção e colocou o país sob […]

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Ruy Guerra, Calabar e o Império Colonial Passei o ano todo de 2018, mais parte de 2019, em Portugal. Fui escrever um livro sobre um sociólogo português, Hermínio Martins. Nascido em Lourenço Marques, hoje Maputo, Hermínio foi contemporâneo de Liceu do cineasta, dramaturgo e também compositor de canções Ruy Guerra. Também nascido em Moçambique, num período em que este país era uma das colônias de Portugal.  Ambos impedidos de voltar para Lisboa após a formação ginasial por conta da perseguição política da PIDE, a polícia política do Estado Novo Salazarista. Eram outros tempos, ou nem tanto, talvez movimentações dos mesmos tempos, das mesmas ondas de aberturas democráticas e regimes autoritários em que vivem Brasil e Portugal.   Quando houve a Revolução dos Cravos, a revolução democrática de 74 em Portugal, o Brasil estava na pior fase da sua horrenda ditadura civil-militar. Antes disso, alguns anos apenas, Hermínio escrevera um texto sobre a política em Portugal no ano de 1968, e se espantara com o fato de os países em língua portuguesa estarem naufragando em mares revoltos, sem terra à vista, amparo, mínima luminosidade. Éramos ambos Estados vivendo sob a égide de regimes autoritários, com polícia política, desaparecidos, torturas e encontros insidiosos, nem tão secretos, entre os tremores da sacristia e os temores da carne atravessada, o nervo contraído, o gozo obscuro pela morte e pelo obscurantismo.  Dizia-se, aliás, no pensamento português, das conferências democráticas, com Eça de Queiroz e Antero de Quental até o racionalismo límpido e cristalino de Antonio Sérgio, que a bondosa e tumultuada terra lusitana fora marcada desde o seu nascedouro pelos mesmos movimentos de abertura e regressão, de sintonia com o espírito do mundo e fechamento obscurantista terrível e inquisidor. Do senso de medida e equilíbrio belo das formas de racionalidade à grandeza mítica, ou mitopoética, do Portugal das grandes navegações, passava-se, por vezes num átimo, para a pequenez cheia de corcundas, luminosidade baixa, gosto pelo monstruoso e pelas zonas sombrias da Contra-Reforma e da Inquisição. Estes movimentos enigmáticos do espírito se encontram, e voltamos ao nosso personagem inicial, na trajetória curiosa de Ruy Guerra. Vejam só. Ruy Guerra não volta a Lisboa e segue ao Brasil. Estamos falando de um período próximo ao fim dos anos 50. O país está ali, em sua plena forma. A vanguarda concretista, a Bossa Nova, Brasília, a USP, o Cinema Novo, Niemeyer e Tom Jobim. A esquerda cultural, amiga das vanguardas e compromissada com o povo. O país estava surpreendentemente inteligente. Clareza das formas, espírito de invenção, racionalidade viva e culta. Mas foram poucos anos. Veio o período mais seco, a explicitação do conflito, ainda antes do golpe fatal, cuja forma fanstamasgórica continua vivíssima e tem ganhado ares tétricos atualmente. Das entranhas imundas e nada saneadoras do capitalismo internacional veio abril de 64, e o Brasil se viu, de repente, em uma ditadura militar, depois consolidada como regime autoritário através de uma série de Atos Institucionais, culminando no AI-5, que instaurou um Estado de exceção e colocou o país sob […]

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