Ensaio

Sempre fui alegre, sempre fiz do pedaço de pão um luxo: Josuel Miranda

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Sempre fui alegre, sempre fiz do pedaço de pão um luxo: Josuel Miranda

Nascido em uma família adventista, em Pelotas, no longínquo ano de 1936, Josuel Miranda é um artista naif sul rio-grandense, desses que são cultuados pelos biógrafos, pelos acadêmicos, pelos que adoram estudar as culturas negras e homossexuais – geralmente depois da morte do “objeto de pesquisa”.

Consigno o quão estranho me parece essa máxima de grifar o nome das pessoas depois que não estão mais entre nós. Esse recorte se tornou mais evidente, para mim, em uma recente incursão em conversas sobre exposições de arte, quando indivíduos envolvidos nesses eventos privilegiaram falecidos em detrimento das histórias vivas. Deve existir espaço para ambos, mas existem urgências – “reparo histórico”, afinal, deveria acontecer em vida.

Dia 18 de julho de 2023. Eu ia subindo a rua João Manoel, no Centro Histórico de Porto Alegre, em direção à Duque de Caxias, ofegante já antes da metade do trajeto. O que me fez ruminar na minha idade, provavelmente as ladeiras são as primeiras testemunhas nada discretas do avanço do tempo. Lembrei-me de que estava prestes a conhecer Josuel, que está na capital gaúcha, hospedado no apartamento de um amigo, parceiro das antigas, também de Pelotas. E que ele está com 87 anos, brincalhão, falante e em plena atividade. Avancei.

Josuel construiu sua vida no Rio de Janeiro, onde reside, na comunidade do Vidigal, há cerca de cinco décadas. Na cidade “maravilhosa” para alguns, trabalhou como copeiro, faxineiro, vendeu doces – que faz muito bem. Essas atividades foram lhe assegurando a sobrevivência. Algo um tantinho mais equilibrado depois da aposentadoria no valor mínimo. Garante pouca coisa, mas ajuda muito.

Entrei em um dos prédios da Duque. Ele me recebeu e não consegui evitar certa surpresa. Ao contrário do que minha imaginação formara, ali estava alguém mais baixo do que eu. E eu odeio me sentir uma taquara. Cumprimentos feitos, seguimos para o quarto, onde, além da cama, tem um sofá e cadeiras. Josuel detesta o frio e argumentou ser uma das razões pelas quais não volta a residir no Rio Grande do Sul. Desembarcou no aeroporto, junto ao ciclone extratropical, em uma das semanas mais gélidas do ano. Chiste climático. 

Sentamos no mesmo sofá de dois lugares. Logo estávamos confortáveis, falando pela boca e pelas mãos, tocando um ao outro para fazer o reconhecimento – sou de uma geração em que o toque não era, ao menos boa parte dele, considerado invasivo. Ele começou soltando as palavras e seguiu aos borbotões, indo e voltando. Transpareceram os aprendizados de um homem vivido, como diz o vulgo. 

Anos 1980. 
Foto: Acervo de Zulmira Miranda.

Discorreu sobre a mãe durona, lavadeira, religiosa, que o chamava de “maricas”; de um período em que fugiu de casa; de aprender a dançar assistindo a filmes no cinema; de ter sido destaque na escola de samba de um clube negro por cerca de quinze anos; de ter conhecido artistas da cidade natal como Mello da Costa (1947-1966), de quem foi amigo, e Judith Bacci (1918-1991), a pintora negra recentemente redescoberta; de ter tido flertes amorosos com pessoas da cidade que não resistiam ao seu sex-appeal, nomes que não pode revelar, porque de famílias tradicionais; de seu início na pintura com pequenos desenhos que fazia enquanto trabalhava em uma banca de revistas na rodoviária de Pelotas; da sua ida para o Rio de Janeiro; dos perrengues para bancar o sustento; da convivência com a alta sociedade; do consumo de cocaína pelos ricaços e da excentricidade das figuras do mundo artístico e da elite; da sua arte.

Trabalhando em casas de famílias abastadas, seus quadros foram sendo adquiridos por muitos dos frequentadores que apareciam em festas organizadas pelas madames. As obras ganharam o mundo. Muitos desse meio o viam como um tipo exótico. Recordou-se de uma senhora deslumbrada por poder bailar com um negro pelo salão. Também atraía os homens pela sexualidade à flor da pele (a objetificação do corpo negro é algo para uma matéria muito mais extensa do que essa apresentação). À discriminação étnico-racial e de orientação sexual, com as quais relatou ter deparado em vários momentos, ele aprendeu a responder de forma peculiar, com gingado.

Não existe, de fato, uma receita para lidar com as situações que o mundo apresenta. Contexto, contingências, psicologia – há muitos determinantes. Josuel usou a via do desbunde, do bom humor, da alegria, estratégias que permitiram com que se mantivesse vivo. A personalidade envolvente, a graça, a leveza foram descontruindo barreiras. Fez amizades, mesmo que os pais de alguns dos novos colegas mandassem seus filhos ter cuidado com aquele “tipo de gente”. 

A certa altura do bate-papo, Josuel começou a se preocupar com os quitutes que estavam em preparo na cozinha. Logo estávamos na sala de jantar, onde me ofereceu pão doce recém saído do forno e brownies de chocolate, os dois de sua produção. Tomamos chá. A sociabilidade e a simpatia são, inegavelmente, seus fortes. 

Fomos dar uma volta pelo apartamento. Algumas de suas telas estão dispostas pelas paredes. Pedi permissão para fotografar. Usei meu celular e minha pouca destreza, portanto as imagens que acompanham este texto não estão com a qualidade necessária. Outros trabalhos ainda estavam em canudos, como vieram na viagem. Ele fez questão de desenrolá-los sobre a cama. 

Processo criativo. 
Foto: Jandiro Adriano Koch
Giz de cera sobre cartolina. 
Foto: Roger Bernareki Martins

Como artista, é indubitavelmente eclético. Há quem prefira uma manutenção de estilo, sustentando ser a unicidade a tal da identidade pessoal. No entanto, também há, diga-se, muitos com essa linguagem própria que acabam caindo na repetição ad nauseam. Entre o extenso acervo que trouxe do Rio, estão óleos sobre tela, desenhos feitos com grafite e obras com giz de cera sobre cartolina. 

Empregou desde os tons mais sombrios até os mais vivos, de cores intensas. Entre as figurações, tipos populares, festejos, mulheres sozinhas ou reunidas, temas religiosos e naturezas mortas. Questionei sobre a técnica, se fazia representação a partir de objetos reais, ou seja, se pintava coisas ou pessoas que estavam a sua frente. Respondeu-me que tudo o que tem feito é criação, mas que, excepcionalmente, utiliza algum modelo real para se inspirar – as flores que vê no Mercado Público, no Rio de Janeiro, são exemplos desse último modus operandi, embora as retrate de memória.

Grafite. 
Foto: Jandiro Adriano Koch
Óleo sobre tela. 
Foto: Jandiro Adriano Koch
Giz de cera sobre cartolina. 
Foto: Jandiro Adriano Koch

Diante dos diversos ofícios exercidos ao longo da vida, ocupações que também dizem de sua classe social, eu quis saber qual, se pudesse escolher, seria o preferido. Disse-me que gostaria mesmo é de “administrar uma casa grande, como uma pensão, onde uma turma de pessoas poderia morar, comer bem… com um atelier em um quarto dos fundos.” 

Explicou-me que sua família nunca deu muita atenção ao seu talento, mas que ele sentiu que lhes chamou a atenção quando, pela primeira vez, apareceu, na casa em que moravam em Pelotas, um comprador com um cheque na mão. Indaguei se chegou a pensar que poderia viver da arte. Respondeu que nunca acreditou na possibilidade. 

De passagem por Porto Alegre, ficará algumas semanas. Está aproveitando para comercializar as obras de tamanhos e técnicas diferentes. Eu já havia falado com ele por telefone, também com amigos e colegas pintores, que me auxiliaram a montar um perfil mais completo do que esta matéria, texto que será publicado na revista “A Mosca”, prevista para sair na capital gaúcha em agosto. Josuel não é um desconhecido, já fez exposições, há registros sobre ele em jornais antigos, mas, como ainda não estão digitalizados, são material que a geração “Google” praticamente não sabe acessar. 

Despedi-me com um abraço, um desses desajeitados, de pessoas que acabam de se conhecer. Pretendo revê-lo em breve. Levei uma frase na cabeça: “Sempre fui alegre, sempre fiz do pedaço de pão um luxo.” Deixo um desejo meu: que a vida lhe seja saudável e longa – mas que os espaços de arte, memória e produção de conhecimento não se fiem nisso.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari, “O gaúcho era gay? Mas bah!” seu último título lançado este ano.

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