Ensaio

Toca o parabéns?

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Toca o parabéns? Anton von Burgund (1470). Casa de baño. Têmpera e ouro sobre pergaminho.

No belo filme de sucesso sobre a vida de Violeta Parra, há uma passagem que tenho visto ser comentada com comoção. Convidada a comer na cozinha da festa burguesa em que acabara de atuar, a grande chilena reage com vigor indignado ao que tomou como uma humilhação. 

Não me pergunto se terá sido exatamente assim. Minha questão poderia ser o porquê daquele sentimento; da presença, no filme, daquela sequência; da empatia do público para com a ofendida.  

Alguns personagens sociais que vivem realidades de opressão, violência, desprezo ou preconceito experimentam, ao menos em determinados momentos históricos, uma dualidade contraditória, porque, simultaneamente, são elevados, tratados como algo sublime, especial, carregado de uma potência simbólica (que, no entanto, é paralela a uma vedação a um poder real). Talvez nos possam vir à cabeça, para exemplificar essa condição, as mulheres, os indígenas ou os artistas. 

Se é cada vez mais clara a carga de sexismo presente em determinadas formas de exaltação ou divinização da mulher; se tem ficado muito mais evidente do que, digamos, no século XIX, que a mitificação e mistificação beatíficas a respeito dos povos originários muitas vezes caminham ao lado da supressão de seus direitos, territórios e integridade… talvez no que diz com a arte e o artista essa inversão não seja tão clara. Ocorre-me, de início, que, em seu caso específico, a contradição é menos maliciosa e mais disseminada: não parece pertencer a uma estratégia de dominação, controle ou extermínio.

As pessoas mais bem-intencionadas e mesmo as responsáveis por importantes avanços no tratamento social da arte, por exemplo militando por políticas públicas a ela relacionadas, dificilmente se livram dessa concepção paradoxal. 

Penso há algum tempo em escrever algo sobre isso e sempre esbarrei no receio de que uma tentativa de “explicação” de comportamentos e concepções muito generalizados possa ser cansativa e estéril. Comecei exemplificando com cinema, farei isso novamente mais adiante. Então, pego carona nessa linguagem; nessa ideia de argumento em quadros, cenas, sequências.

Não são muito semelhantes, no imaginário ou no cotidiano de um país como o nosso, o lugar de um músico e o de um ator, escultor, bailarino. A música é a arte mais democratizada, distribuída, compartilhada. Ótimo. Mas não só, ou sempre, “ótimo”.

Só em um contexto autoritário se pode imaginar o direcionamento da obra de um artista; a tentativa de determinar que as artes plásticas se dediquem a determinadas temáticas, a dramaturgia tenha essas ou aquelas ênfases ou linguagens. O público não dirá ao pintor “Che, teria ficado melhor mais amarelo, com mais umas árvores…” ou “por que não pintas naturezas mortas, ao invés de retratos?” O artista produz; o público, recebe, reage, acolhe ou não.

Pois um músico – principalmente o cantor popular – ouve de muita gente o quê, como e quando deve atuar. Ele sempre estará marcado pela demanda que muitas vezes supera ou despreza o artístico: a de entretenimento. Desconfio que isso se tornou mais intenso com a invenção de aparelhos que reproduzem música – mas parece claro que a questão já se colocava em tempos remotos, com artistas acompanhantes de eventos nobres ou burgueses. 

Aqui, talvez, outra contradição. A invenção de uma máquina de tocar música poderia ter valorizado o músico “presencial”, para usar uma palavra de moda. Talvez isso tenha acontecido em parte; se quero música de fundo e não quero ter postura para acompanhar uma execução, recorro ao mecânico. O que me parece é que essas tecnologias, ao mesmo tempo, podem ter fortalecido e disseminado a ideia de ter música como entretenimento ao fundo de algo principal – e nem sempre se estabelecerá a diferença entre o fonógrafo e a perfilada e bem-vestida e penteada orquestra. 

Há um quadro medieval representando um banho coletivo, um tanto orgiástico. Casais em torno de uma mesa posta dentro de uma grande banheira de madeira; cenas libidinosas aqui e ali, um rei e um religioso entrando no recinto. Em primeiro plano, ao centro, um jovem – vestido – toca um alaúde. Ninguém repara nele. Minto: há um cusco, jeito de galgo, ainda que fornido pelas sobras dos banquetes, que está junto ao artista e parece ter nele algum interesse. 

(Lembrei de um filme de John Wayne em que o personagem dele e os filhos, ao lado do inseparável velho amigo índio e do bravo e fiel cachorro, vão em resgate de uma criança sequestrada, neto do personagem de Wayne. Não deve haver muitas produções em que se gastaram tantas caixas de bala. Aqui, chamaríamos a sequência final de “tendel de balaços”. Tudo deu certo, graças à sorte e aos Colt bem manejados. Do lado dos bons, só duas baixas: o índio e o cachorro. Bueno; retornemos.)

Desculpe-se a crueza, mas Violeta Parra queria entrar na banheira? Seria natural ou esperável que a convidassem? Seu contemporâneo peruano – espero que se tenham conhecido – genial, Nicomedes Santa Cruz, diria:

El canto no es privilegio 
de seres superdotados: 
tanto pueden iletrados 
como aquellos con colegio. 
Así pues, no hay trato regio 
que exigir pueda el poeta 
si su labor interpreta 
con igual celo y afán 
que el obrero que hace un pan 
o conduce una carreta. 

E alguém imaginaria que La Viola o deixasse sem resposta? (Pucha, que está ficando bom; me ajudem com o roteiro!) Lá vai:

Yo canto a la chillaneja
Si tengo que decir algo
Y no tomo la guitarra
Por conseguir un aplauso
Yo canto a la diferencia
Que hay de lo cierto a lo falso
De lo contrario no canto

Claro. Que tamanho cretino, parvo (melhor: “sem-noção”), seria eu, se quisesse corrigir, emendar Violeta Parra, em seu sentido do público, da arte e sua função, das relações de tudo isso com as classes em nossas severas sociedades. 

Mas os dois caminhos são vivos, a dualidade contraditória existe.  

Violeta era explosiva, temperamental. Façam a lista de adjetivos, a partir desses dois, encontradiços na descrição de um artista: extravagante, estranho, louco, sensível ou irascível. Talvez sejam almas raras, feitas de raras fibras – ou talvez seja esse um lugar esperado, concedido, destinado a quem nunca terá claro, para si e os que o cercam, qual é mesmo o seu lugar. 

Os convidados da festa não comeriam na cozinha. Os garçons não cogitariam fazê-lo no salão. 

E a artista? A ofensa existiu, estou certo disso. Não apenas porque acredito em Violeta; porque eu e qualquer outro músico vivemos preconceitos da mesma ordem, mesmo que em graus e formas muito diferentes (e isso que eu sou artista… Mas trabalho!) 

Eu tinha prometido algumas sequências. Assiste só: em dado momento da reunião festiva, pessoal animado, bebericando, flertando, conversando… O músico amigo, convidado, diz “gente, só um pouquinho. Eu vou agora tocar e cantar algo para vocês”.

Se falta em português uma boa palavra para traduzir o “desubicado” do espanhol, aí estaria o momento de usá-la. Estás louco? És narcisista a esse ponto? Quem disse que estamos a fim de… etc. 

Os que não são músicos procurem lembrar; os que são, sorriam para o lado: qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa em uma festa decide um momento em que o músico vai cantar algo. Se manda buscar, ou busca, ou alcança o violão, ainda é menos invasivo do que o frequente colocar o instrumento no colo do “artista”. “Não vais embora sem cantar uma!” 

Sigamos na dualidade: pode ser agradável, pode ser gentil. Aquele celebrado cantor já havia sido convidado com uma frase do tipo “leva violão” ou mais humorística: “sem violão, não entra”. 

Yupanqui dizia “mi guitarra no come asado”. Há quem diga que ele protagonizou – outros dizem que foi um uruguaio – a clássica tirada, diante de um imperativo desses de parte do anfitrião: ficou em casa e mandou o violão de táxi à festa. 

Mal comparando, mil vezes ofereci meu violão, atuando em bares ou algum evento: quando me pediam o “Parabéns a Você”. A invariável resposta – desde os 19 anos – era “não está no meu repertório”. E franqueava o violão para quem quisesse fazer a homenagem. Aí entram, e é justo, as ponderações sobre a diferença de um show, um concerto e o tantas vezes ingrato trabalho de “música ao vivo”. 

Do que falo é de uma cultura disseminada de tratamento da arte e do artista, sobretudo na música e mais ainda se é a chamada música popular, e que remete ao adereço medieval ou burguês de reunião da elite. Fiz um “show de bar” (um excelente violonista se referia, nos anos 80, à frustração invariável do músico, entre conversas altas, gritos, pedidos abusivos, ruídos… dizendo “show de bar é invenção de músico”!) em um lugar que pretendia garantir atenção e respeito, como um café-concerto. No dia seguinte, uma colega do outro trabalho perguntou como havia sido. Disse-lhe que estava bom, mas havia uma mesa muito distraída e barulhenta, o que termina por contaminar as outras. Ela riu divertida e disse “puxa, mas eu além de pagar vou ter que prestar atenção?!?!?” 

Nesta mesma casa eu dissera, em outro recital, que apresentaria um “coquetel de ritmos hispano-americanos”. Em seguida da imagem cafona, pedi ao público que fechasse os olhos e imaginasse o som de uma coqueteleira. Foi uma gargalhada total. É que um sujeito no bar fazia um barulho constante preparando seus drinks, sem se preocupar com o efeito sobre o meu trabalho.

Histórias. Aquela, do violão enviado pelo táxi, na versão em que o músico pícaro era Yupanqui, foi contada por um homem chamado José Pons. Sua lembrança me leva a um costado delicado, dessa posição do artista no imaginário social.

José, mendocino, ao lado de sua esposa francesa, Jacqueline, foram casa e família para artistas argentinos e latino-americanos em Paris. Foram importantíssimos. As memórias daqueles músicos e do casal – Jacqueline ainda vive – dão conta do apoio que significou aquela acolhida, principalmente em tempos de exílio. Mas esses relatos também pintam um quadro que é conhecido de todos nós, em situações mais amenas, em cada uma de nossas cidades. 

Pessoas bem estabelecidas em sociedade, que acolhem e eventualmente protegem artistas. Têm com eles uma amizade de grau variável, mas que sempre passa por uma indulgência a algumas extravagâncias ou imposturas, típicas daquelas almas raras.

Festas, jantares, almoços, aos quais músicos, às vezes de difícil convívio, não faltam. Torço para que isso não seja lido como leviano ou malicioso, mas parece haver uma busca de segurança – de lugar, repito, por parte de quem sabe que não o tem claro.  O trabalho artístico é pouco reconhecido como tal e depende de variáveis de êxito que podem ser muito excludentes ou efêmeras. 

Em contrapartida, a aproximação acompanhada de algo de fascínio, por parte de não-artistas, é notável; talvez – e o digo enfrentando aquela condição de assunto delicado – também a ancestral impressão de poder, conferida por contar com um staff de artistas íntimos. Novamente: nem se pensa, com esse comentário, em invalidar atitudes amorosas, abnegadas, solidárias, necessárias, legítimas, desses apoiadores, para com importantes personagens da coletividade. Dualidades. 

Qualquer músico já percebeu que aquela pessoa na plateia que grita, levanta, se exalta ao ponto da inconveniência, por mais elogiosa que possa estar sendo, talvez apenas não suporte ver as luzes postas sobre outro por duas horas.

O Brasil avançou muito, desde o início dos anos 2000, na gestão da Cultura e no amadurecimento dos conceitos que a ela se referem. Uma espécie de “cultura da Cultura”. 

O Plano Nacional, oriundo das Conferências, dá diretrizes claras, democratizantes, de inteligência. 

Um dos pontos mais lembrados quando se fala sobre ele é a ideia de que Cultura não é só arte. O documento afirma que pretende transcender a manifestação artística e contemplar a diversidade de dimensões culturais. Me parece perfeito esse enfoque que talvez pudéssemos considerar de matriz mais antropológica. De resto, os militantes mais produtivos e de orientação mais democrática da área deixam clara essa perspectiva. 

Ocorre que talvez se tenha chegado a esse estágio necessário sem antes enfrentar aqueles antigos preconceitos para com a arte ou algumas formas dela, que passam por uma concepção instrumental, de entretenimento, mais do que de valorização subjetiva do artista e de seu discurso. 

O depoimento é pessoal, mas estou certo de que não é solitário. Frequentemente, a participação de um músico em um evento de cunho emancipador, de orientação política popular, democrática, é tratada como um momento de amenidade. Ao artista são estabelecidos de forma muito mais rígida o tempo e o roteiro de sua atuação do que a qualquer outro participante. Se ele não chega a tocar para que os outros se banhem, de qualquer forma possui um caráter de adorno, mais do que de discurso. É uma cultura por demais arraigada e sua desconstrução é lenta e trabalhosa. 

Comecei pelo cinema, pedi-lhe ajuda em seguida… e com ele encerro. 

Peço a quem lê o arremate desta reflexão meio caótica, mas que diz respeito à minha militância e trajetória, que proponha a si próprio essas perguntas: por que te comove que os músicos do Titanic afundem tocando? Por que eles não deveriam correr a um escaler e distribuir cotoveladas para garantir um lugar – ou urrar e praguejar, chorar pela morte iminente, quebrando ou esquecendo o instrumento? Eles não são capitães do navio; para estes, há a terrível tradição de honra e sacrifício. Por que esse gesto é visto como belo ou estoico ou nobre? 

Não posso deixar de pensar em relatos sobre culturas nas quais o sepultamento de alguém importante incluía a execução e inumação conjunta de algum de seus cavalos, seus cães, seus parentes, seus escravos.

Eu sou músico toda a minha vida e quero estar, com todos – até com o cusco, aquele -, no calor lúbrico do banquete. Não acompanhá-lo, paralelo e invisível; entre o desespero dos perdidos e a euforia dos que se salvam, tocando meu instrumento, já sem ser ouvido, até mergulhar no oceano gelado e escuro.


Demétrio de Freitas Xavier é cantor, violonista, intérprete da obra de Atahualpa Yupanqui, e radialista, que manteve por muitos anos o programa “Cantos do sul da terra”. 

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