Ensaio

Tornar-se escritor

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Tornar-se escritor Jeferson Tenório (Foto: Carlos Macedo/Divulgação)

Ser escritor não estava nos meus planos, nem nos planos de minha mãe. A princípio, o plano era ter onde morar, não se envolver com drogas, nem com a polícia, nem com as más influências e, claro, manter-se vivo. O mais que pudesse. Nasci em Madureira, no Rio de Janeiro, em 1977, ainda plena ditadura militar. Convivi pouco com os livros. Os poucos que apareciam em casa cumpriam um papel decorativo, ou ajudavam a calçar o pé quebrado de uma mesa. 

Fui um leitor tardio porque passei a infância e a adolescência procurando, junto com minha mãe e minha irmã, modos de sobreviver com dignidade. Não tive muitos brinquedos, o que exigia de mim um esforço imaginativo em transformar tampinhas de cerveja e refrigerante, pedras e caixinhas de papelão em brinquedos. 

Eu tinha 22 anos quando li pela primeira vez um livro inteiro. Era “Feliz ano novo”, do Rubem Fonseca. Foi um acontecimento para mim. No entanto, anos antes, aos 18 anos, escrevi uma novela, mesmo sem ter nenhuma formação como leitor literário. Chamava-se “O perdão do destino”. Na época eu não tinha computador, nem máquina de escrever, então comprei um pacote de folhas de ofício porque eram mais baratas que as folhas pautadas. 

E ali, escrevi à mão cerca de 200 páginas de uma história de uma família de imigrantes italianos. Eu estava influenciado pelas novelas televisivas e pela cultura eurocentrada. Na época também pensava que não havia escritores negros, muito menos personagens negros, também achava que meu nome não poderia servir para ser de escritor. O fato é que “O perdão do destino” era ruim, obviamente. 

Eu só tive acesso ao Rubem Fonseca graças ao poeta e professor Jorge Fróes. Conheci-o dois anos antes de eu entrar no curso de Letras. Num cursinho popular voltado para pessoas negras, Jorge foi primeiro professor negro de literatura que havia visto na vida. Em pouco tempo nos tornamos amigos. Jorge acabou se tornando uma espécie de guia/mentor literário. Em seu pequeno apartamento de 45 metros quadrados, no Bairro Leopoldina, Jorge guardava cerca de 8 mil livros. Eu não sabia, mas talvez os rumos de minha vida estivessem mudando diante daquela biblioteca infinita. 

A partir dali um mundo novo se abriu para mim. Na época, Jorge morava na casa da namorada e me emprestava a chave do apartamento para que eu pudesse ler o que quisesse. Em seguida, entrei na faculdade, e a literatura passou a fazer parte da minha vida definitivamente. A convivência com os livros passou ser uma necessidade. Em pouco tempo vi que os livros podiam me proteger até das abordagens policiais que eu recebia por ser negro. Servia como passe, como um salvo-conduto, portar um livro. 

Um dia escrevi um poema. O título era “Estante revisitada”; eu tinha 24 anos. Inscrevi-o num concurso literário. O primeiro de que participei. O resultado saiu semanas depois e fui premiado com o primeiro lugar. Quando vi meu nome gravado numa das páginas daquela antologia mal podia crer. Achei que seria poeta. Então comecei a ler todos os poetas que caíam nas mãos: Gregório de Matos, Shakespeare, Paul Valéry, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Cruz e Souza, Eliot, Rimbaud. No entanto, quanto mais eu lia, mais eu me afastava da ideia de fazer poesia. 

Eu me dava conta quanto era difícil escrever poemas. Eu não estava preparado para a exatidão que o poema exige. Por muito anos desisti de ser poeta. Então comecei a escrever contos. Também me frustrei. Eu imitava descaradamente os contos do Rubem Fonseca e Hemingway. Eu não tinha a minha dicção narrativa. Quando cheguei nas obras canônicas como Cervantes, Homero, Dostoiévski e Guimarães Rosa, achei que nunca poderia escrever. 

Somente, anos depois, quando já era professor, decidi escrever um conto chamado “Cavalos não choram”. O texto ganhou menção honrosa no concurso Paulo Leminski, em 2006. A partir dali, agora com mais experiência, achei que poderia fazer uma narrativa longa. Então comecei a transformar aquele conto num romance, que se tornaria O beijo na parede. Passei 5 anos escrevendo silenciosamente. Em 2013, O beijo foi publicado, eu era um completo desconhecido no meio literário. Meus amigos, minha família e meus alunos se surpreenderam quando eu disse que havia escrito um livro.  

Em pouco tempo o livro ganhou uma boa repercussão regional. Foi premiado. Dei algumas entrevistas para jornais locais, participei de eventos e fui a muitas escolas. Em 2016 O beijo na parede entrou para FNLD, o programa do MEC que distribuiu mais 50 mil exemplares pelas escolas do país.

Em 2018, lancei meu segundo romance, Estela sem Deus, também houve uma boa repercussão regional, ganhou o prêmio AGES de melhor romance, participei de eventos e fui em universidades e escolas de Porto Alegre. No mesmo ano um artigo sobre Estela sem Deus foi publicado no O Globo, pelo escritor Tom Farias. O que de certo modo me colocou no cenário nacional. A repercussão foi boa. Semanas depois, após ter dado aula o dia inteiro, para turmas do sexto ano, recebi uma mensagem de um editor na Companhia de Letras, dizendo que gostaria de conhecer mais meu trabalho. 

A partir dali, finalizei o romance O avesso da pele. No fim de 2019 entreguei o livro para a editora, com previsão de publicação para maio de 2020. No entanto, como sabemos, a pandemia chegou. As publicações foram suspensas por tempo indeterminado, o que me causou uma grande angústia. Somente em junho recebi a confirmação de que o romance seria publicado em agosto de 2020. 

Eu ainda não sabia e nem podia prever a dimensão que o livro tomaria mesmo antes da publicação, pois ainda em julho, um mês antes do lançamento, recebi a notícia que os direitos de adaptação do livro haviam sido vendidos para RT Features, uma das maiores produtoras de filmes do país, além da ter havido venda de direitos de publicação para grandes editoras de dois países: Portugal e Itália. 

Os dias que se seguiram foram marcados por inúmeros agendamentos para entrevistas. Eu nunca pensei que veria jornais disputando para ver quem poderia divulgar a primeira resenha sobre o livro. Após o lançamento, uma verdadeira avalanche de entrevistas, resenhas e lives tomou conta da minha vida por meses. O livro foi parar na mão de famosos como o ator Cauã Reymond. O jornalista Zeca Camargo disse, em seu programa na TV, que o livro era perfeito. Leandro Karnal indicou o livro na CNN, o cantor Leoni indicou o livro, o ator Selton Melo escreveu dizendo que o livro já nasceu um clássico. Dei entrevista para o Pedro Bial, para a revista Veja, para a revista Época.  Apareci na capa da revista Istoé, dei entrevista para o Wall Street Journal.  

O avesso da pele foi capa de quase todos os suplementos literários do país. Resenhas na revista Piauí, jornal Rascunho, Suplemento Pernambuco. Foram centenas de menções em blogs, facebook e instagram. O Avesso foi o livro do ano pelos críticos da revista Quatro Cinco Um, além de figurar em grande parte das listas de melhores do ano. Como se não bastasse tudo isso, em outubro fui convidado para ser o Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Em novembro, recebi um convite para uma residência literária online, em Berlim. 

Cheguei ao final de dezembro atordoado com tudo que havia acontecido. Ainda é difícil dizer o quanto toda essa exposição afetou minha escrita e o meu modo de fazer literatura. Para me manter perto do trabalho do texto, tomei a decisão de continuar produzindo, mesmo em meio ao turbilhão. Escrevi contos por encomenda e iniciei um novo projeto de romance. Eu não podia parar. Como não parei. Porque é fácil acomodar-se diante do reconhecimento. Examinei minha vida até aqui e penso que a única coisa que poderia fazer era continuar escrevendo.  


Jeferson Tenório, professor e escritor. É autor de O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), entre outros livros.

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