Ensaio

Três retratos de mulher – parte 2

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Três retratos de mulher – parte 2 Toulouse Lautrec, L'Assommoir, 1900.

Leia a primeira parte aqui.

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AS NARRATIVAS

Os Goncourt e, especialmente, Zola fizeram muito barulho na época pela sua ambição de analisar metodicamente o papel da hereditariedade, dos atavismos e das pulsões subterrâneas no desempenho social dos seres humanos. O grande ciclo zolaiano de vinte romances, Os Rougon-Macquart, se propõe ser a “história natural e social de uma família sob o Segundo Império”, rastreando ao longo de gerações as tendências naturais (hoje se diria genéticas) de uma estirpe sob a influência de diversos meios, entendidos tanto como ambiente físico — uma mina de carvão, o mercado público de Paris, a bolsa de valores, uma loja de departamentos, a caserna, o teatro, as alcovas do alto meretrício, as estradas de ferro — quanto como entorno humano, de multifacetadas interações socioeconômicas e psicológicas. Ele via isso como uma precisão a mais sobre o imenso painel balzaquiano, A comédia humana, concebido e escrito décadas antes, quando essas ideias cientificistas ainda não haviam consolidado seu sortilégio malsão sobre o pensamento europeu. No romance que estamos examinando, L’Assommoir, o ambiente escolhido é o bairro popular da Goutte-d’Or, em Paris, mais especificamente um vasto prédio de apartamentos humildes. É por ali que acompanhamos mais de vinte anos da vida de Gervaise Macquart, lavadeira e passadeira.

Não recontaremos aqui o enredo do livro, apenas pinçaremos os aspectos novos que o naturalismo de Zola ressalta da realidade ao retratar uma mulher de baixa renda no meio do século XIX. Diversas experiências bastante concretas que antes dificilmente entravam em foco nos romances de alto calibre são afrontados: o alcoolismo endêmico (que é a principal tendência hereditária explorada, com acentos de denúncia social aos males da bebida), ressacas homéricas e o mau rendimento laboral correspondente, filhos biológicos criados por outro marido ou família, violência doméstica verbal e física, o medo onipresente dos credores, da polícia e da justiça, a dialética fluida dos concubinatos e ménages à trois socialmente tolerados e psicologicamente espinhosos (há aí todo um mundo de diferenças e semelhanças com as convenções de casamento e amantes dos círculos abastados, exploradas à farta por Balzac) e até o banal palavrão (o merde! da p. 626 é um salutar toque pé no chão em meio à literatura oitocentista, tão pudica). Entram também em jogo outras questões, menos de foro íntimo e mais da vida pública, como acidentes de trabalho e as farras coletivas no dia do pagamento do salário, todas com função ativa dentro da trama e simbologia do livro, que conjuga tudo isso em uma complexa rede de alavancas e freios temáticos.

Os aspectos mais escabrosos da escola naturalista se fazem presentes em descrições, metáforas e analogias bestializadas, em que corpos e atos humanos — e máquinas também, como o temível alambique do bar que dá nome ao livro — são constantemente equiparados a bichos e seres monstruosos, ou pelo menos ressaltados em seus lados puramente materiais, com um toque grotesco sempre rondando, mas raramente eclodindo (eclode, por exemplo, na cena final com o agente funerário, um tanto fora de registro; idem no delirium tremens de Coupeau, no último capítulo). O parto espontâneo de Gervaise na entrada do seu quarto e sala, sem a assistência de ninguém, é um dos pontos-chave em que corporalidade feminina e descaso ético-social se conjugam, assim como o assédio generalizado a todas as mulheres, jovens e velhas, que passam o livro inteiro sendo “beliscadas” por homens alcoolizados ou não.

Essa posição completamente exposta da mulher pobre é um dos pontos de contato principais de L’Assommoir com Germinie Lacerteux, dos irmãos Goncourt. Tida como a obra inaugural do naturalismo, seu famoso prefácio propõe aos leitores enfim um “romance verdadeiro”, sem mentiras, tirado fresco da vida real. Impressionados com a descoberta que fizeram, após a morte dela, da “segunda vida” (leia-se: vida pessoal, fora de serviço) que a sua empregada doméstica tinha, eles se inspiraram nela para compor um romance em que a primariedade das descrições clínicas da “histeria” de Germinie é amplamente compensada pela profundidade psicológica com que são representadas suas repetidas frustrações amorosas e duas maternidades clandestinas e desastrosas (um natimorto e uma filha vitimada por doença ainda na infância). O abuso sexual impune e o alcoolismo como fuga das durezas da vida seguem presentes, como no cortiço do bairro Goutte-d’Or. Mas a representação do trabalho é bem diferente: os Goncourt ficam longe das explicações precisas de Zola sobre técnicas profissionais (como se lavava e passava roupa 150 anos atrás? Leia L’Assommoir e descubra), concentrando-se na dinâmica interpessoal da patroa e da cozinheira-arrumadeira, registrada com ouvido fino e grande maestria linguística na representação das disposições de espírito cambiantes de parte a parte e suas conversas ora ríspidas, ora empáticas. 

O manejo que os Goncourt fazem dos diferentes registros de linguagem nos diálogos diretos é interessantíssimo, não só jogando habilmente com calões e expressões dialetais, como Zola (que os usa, com a mão segura de quem os anotava in loco, em extensos e virtuosísticos trechos de discurso indireto livre, um dos pontos fortes da sua técnica), mas principalmente apostando pesado em sintaxe entrecortada e pontuação expressiva: a discussão de relacionamento do capítulo LIII e o constrangido acerto de contas financeiras do LXVIII são voos altíssimos de estilística, com um nuançado jogo de pausas, entonações e subentendidos que quase lembra o contemporâneo Henry James. Já a escritura do narrador, é preciso apontar, por vezes falha por excesso de rebarbas — mesmo em francês, que não admite o nosso elegante sujeito oculto, incomoda o leitor uma sucessão de quatro (p. 99), cinco (p. 116) e até sete (!) (p. 228) períodos consecutivos começando com o mesmo pronome pessoal reto elle. Entretanto, o tom febril e exaltado, quase baudelarianamente satânico, com que se evoca os tormentos mentais e emocionais de Germinie (como a espera na rua pelo amante no capítulo LI) nos faz perdoar os pecadilhos estilísticos desse livro que marcou época, injustamente esquecido e até hoje sem tradução em português.

E é com considerações de estilo que passamos ao incontornável Flaubert, no que é um dos contos mais bem-acabados já escritos. Um coração simples quase choca inicialmente pela objetividade serena, às raias da indiferença, com que a vida inteira da doméstica Félicité é contada em trinta páginas (fica a nostalgia da hipótese: e se Flaubert tivesse feito dela um segundo romance de aldeia, como Madame Bovary…?). A cadência de crônica rural da página de abertura, totalmente cervantina ao equilibrar estado civil e mobiliário, pretensões senhoris e renda contada, parece introduzir uma narrativa cuja fluidez franca, aliada ao senso prático do mundo doméstico, excluirá o nexo com o grande mundo aqui fora. Mas a famosa impassibilité de Flaubert é mais um mito crítico e biográfico do que um fato literário, pois uma leitura sensível e informada captura uma grande variedade de piscadas de olho estruturantes e até referências extraliterárias disfarçadas. 

Ao contrário dos seus contemporâneos que acabamos de analisar, Flaubert não é nada crasso em mistura de registros de linguagem, mantendo distância dos desvios de norma culta e da cor local. Faz, porém, um uso tanto mais críptico da polifonia, chegando mesmo ao itálico estratégico para transmitir a maledicência usual das cidadezinhas de interior (a sala de Madame Aubain, na p. 591; aquelas senhoritas Rochefeuille, nas p. 603 e 613), e a própria ausência da voz de Félicité, que tem bem poucas falas reportadas diretamente, contribui para a construção da personagem, curiosamente impermeável. Quanto ao esquema de remissões externas, ele é riquíssimo: o cretino Bourais não rima com Homais por acaso; uma notícia ominosa para a vida pacata de Félicité chega em um 14 de julho; e ficamos em dúvida se o “Felicidade” do seu nome é ironia cruel ou confirmação de que uma vida tão singela e arcaica é mesmo assim melhor do que a nossa, assim como o Aubain do sobrenome da patroa pode significar tanto um estrangeiro destituído de certos direitos quanto, declinado no feminino, um golpe de sorte, uma fortuna inesperada — e isso reflete sutilmente a oscilação entre destacamento e generosidade da sua personalidade complicada; Paul e Virginie, o casal de filhos de Madame Aubain, remetem ao romance epônimo de Bernardin de Saint-Pierre, um best-seller mundial do pré-romantismo, mas eles não encaminham vidas muito românticas, não. O realismo severo de Flaubert é tão saturado de símbolos e ambiguidade quanto o de Kafka.

À parte esses quesitos formais, o percurso de Félicité é, ainda que menos exuberante em peripécias escandalosas que o de Gervaise e Germinie, bem mais rico existencialmente, em contraste com sua extrema singeleza de espírito, ou em função dela mesma. O ritmo de vida compassado do interior, a presença crucial dos animais e da vegetação, e a ausência de Paris (Flaubert tinha o desgosto que Tolstói nutria pela cidade moderna) dão ao relato uma luminosidade intensa, purificada. O mesmo halo de coisa natural perpassa a religiosidade cândida e mística da protagonista, sem dogmas, em que até os receios são desprovidos de terror — e nisso estamos bem distantes das dilacerações interiores de Emma Bovary ou da atmosfera mefistofélica do comerciante Lheureux. A recusa de Flaubert de carregar nas tintas livra a sua narrativa do mau gosto gótico de muitos dos real-naturalistas, e em muito contribui para justificar sua glória póstuma, bem superior à dos outros autores que vimos aqui, tão démodés quanto os nossos naturalistas brasileiros. (Caberia um ensaio novo para discutir um quarto recorte, secundário no naturalismo da França continental, crucial no do Brasil: o racial, fortíssimo não só nos romances de Aluísio Azevedo, mas também em títulos há muito não mais lidos, como Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha.)

Nenhuma dessas observações críticas substitui a leitura das obras, evidentemente, mas elas servem para expor algumas questões incômodas. O resgate das sombras dessas figuras negligenciadas na literatura, o olhar detido sobre quem atua na economia braçal, justifica os preconceitos e estereótipos que vêm junto à tona nessa literatura tão datada? O que é preferível: que os autores se limitem a retratar o meio social de onde vieram e onde circulam, ou que tentem, ainda que desajeitadamente, colocar na literatura mainstream o enorme contingente humano que é em larga medida excluído da arte, tanto no lado da sua produção e fruição, quanto no lado da sua representação honesta dentro das obras? Existe uma legitimidade artística que autoriza um escritor a escrever só sobre as esferas das quais concretamente participou (Górki e seus andarilhos, por exemplo) ou a retratar internamente só pessoas do seu gênero, ou o talento tem salvo-conduto em toda parte? Todas perguntas que são mais bem respondidas pela literatura contemporânea, mas que podem ser ao menos suscitadas também por livros antigos, por vezes obscuros, e que seguem incomodando tanto tempo depois — o que é a marca do clássico.


Referências:
FLAUBERT, Gustave. Trois contes. In: Œuvres. V. II. Paris: Gallimard, 1952. Bibliothèque de la Pléiade, v. 37. Edição de A. Thibaudet e R. Dumesnil
GONCOURT, Jules et Edmond de. Germinie Lacerteux. Paris: Classiques Garnier, 2022. Edição de Éléonore Reverzy.
ZOLA, Émile. L’Assommoir. In: Les Rougon-Macquart. V. II. Paris: Gallimard, 1961. Bibliothèque de la Pléiade, v. 154. Edição de Armand Lanoux.


Théo Amon (Porto Alegre, 1984) é tradutor e pesquisador. Trabalha com inglês, alemão, francês, italiano e espanhol, além de revisão de português e edição de texto. Possui mestrado e bacharelado (com Láurea Acadêmica) em Letras e bacharelado em Direito pela UFRGS. Atualmente é doutorando em Letras, com tese sobre o realismo em Thomas Mann.

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