Ensaio

Um estallido

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Um estallido Foto: Reprodução YouTube

Quando era mais nova, gostava muito de duas coisas: rock argentino e futebol. Ia ao Olímpico até mesmo para ver os jogos mais inauditos e passei muitas tardes vestindo meu favorito entre os moletons do meu namorado na época, que era de uma das nossas bandas favoritas, a Bersuit Vergarabat.

Envelhecemos todos. O futebol e eu, e la Bersuit envelheceu especialmente mal. Já que continuo ouvindo rock argentino, esses dias uma playlist feita “especialmente para mim” pelo serviço de streaming, continha um de seus hits, ressuscitado infame e recentemente pela campanha de Javier Milei: Se viene. A história de origem detalhada da canção está na Wikipedia para todos que quiserem ler e adquiriu aura premonitória porque o estallido que anuncia de fato veio três anos depois de seu lançamento. Muito do que se passa na política argentina ainda hoje é desdobramento da experiência de dezembro de 2001. As eleições antecipadas pelo caos naquele mês foram as que elegeram Néstor Kirchner e a quase que total morte da Unión Cívica Radical — que era junto com o peronismo a outra principal força partidária do país — deixou um vazio político preenchido por Mauricio Macri e hoje Milei. 

Este último usou muito essa canção da Bersuit Vergarabat em seus atos de campanha porque parte de sua proposta é justamente que todo “se explote”. Não importa que a música tenha sido escrita tendo como alvo a presidência de Carlos Menem, a quem Milei reivindica e cujo sobrinho hoje é o presidente da câmara de deputados. Há no uso da canção a tradução de um ímpeto destrutivo da coisa pública ao qual lamentavelmente nós brasileiros também nos familiarizamos nos últimos seis anos.

Sigo em minhas vacaciones porteñas e, enquanto caminhava numa segunda-feira chuvosa rumo a um dos cafés onde gosto de escrever, me chamaram a atenção os versos “Si esto no es una dictadura/¿Qué es?, ¿qué es?”. No final da década de 90, uns vinte anos depois do golpe de 1976, uns chabones de uma banda de rock usaram essa palavra para caracterizar os estertores de um governo eleito democraticamente, talvez porque percebessem que muito de seu cotidiano ainda trazia continuidades daquele período anterior. Trata-se desses usos do passado, da história ou de termos políticos que funcionam bem como exercício retórico, mas que também têm o potencial para ser caixas de Pandora. Pode-se dizer que a canção foi escrita já denunciando a crise de representatividade política que assolava esse lado do Prata, que deixava evidente os limites da ideia de democracia em si mesma e do primeiro intento de dolarização da economia, o que voltou à pauta recentemente com a galopante desvalorização do peso.

Em 2013, nos protestos que começaram no Brasil pelo aumento das passagens de ônibus no início do ano e que depois viraram um agregado de demandas vagas e muitas vezes contraditórias, também se atirou o termo “ditadura” de um lado a outro. Houve quem dissesse que vivíamos (e há quem diga que voltamos a viver) uma “ditadura do PT”, assim como na Argentina se fez o uso do termo “tirania” desde o século XIX, primeiro para designar Juan Manuel de Rosas e depois Juan Domingo Perón. Perón, apesar de ter tido parte em um golpe militar em 1930, chegou à presidência através de eleições democráticas. Ou seja, as tiranias, as ditaduras e a liberdade são termos usados muitas vezes imprecisamente a depender dos contextos e de quem mobiliza esses vocábulos para caracterizar situações que gostariam de mudar. Serve também para muita gente se colocar no lugar de vítima quando é tudo menos isso.

Esses dias escrevi em outro lugar a respeito de como, até mesmo no futebol, os usos que fazemos do passado ou da história servem para que nós nos sintamos confortáveis e no limite nos entretenham. É normalmente um uso do passado visando um tipo de história na qual aqueles que percebemos como nossos predecessores ou são pessoas que cometeram barbaridades porque viviam “em outro tempo” ou então são vítimas, resistentes e heróis descomplicados. Os revisionismos promovidos por Leandro Narloch e pelo Brasil Paralelo, sobre os quais colegas historiadores têm escrito bastante, são parte dessa busca por validação e passada-de-pano sobre o passado da parte de pessoas conservadoras, vinculadas à extrema-direita, e são em geral uma resposta à historiografia acadêmica e às políticas públicas inclusivas do início dos anos 2000. 

Isso não significa dizer que usos do passado também não abundam na esquerda ou no que genericamente chamamos campo progressista. Como argumentei nesse meu outro texto, eles ocorrem até mesmo nos clubes de futebol. Falei que assim como há os colorados que dizem que todo fascista veste azul, há aqueles gremistas que buscam se contrapor ao histórico racista do Grêmio com malabarismos muitas vezes pouco honestos. Podemos dizer não ironicamente que a dupla Grenal é um bom laboratório para entender como se constroem narrativas paralelas sobre um mesmo tema, beirando a dissonância cognitiva, em que árbitros, jornalistas e narradores são acusados de colorados ou gremistas a depender de quem seja o interlocutor. 

Muitos jornalistas se gabam de serem acusados igualmente de uma coisa de ou de outra, de um lado ou de outro, sem ler efetivamente o que isso significa, porque muita gente que se quer razoável entende esses usos discursivos como “irracionais”, “radicais”, frutos do “fanatismo”. Não lhes ocorre que seu próprio rechaço e incômodo com o discurso político, histórico ou futebolístico apaixonado também tem uma origem emocional e é muitas vezes um sinal de apego a um “estado normal” de coisas que para muitos é insuficiente, sobretudo politicamente. Respondemos ao mundo com base nos sentimentos, nos afetos e daí reagimos ao que nos toca mobilizando um léxico que, embora não pareça, é tudo menos apolítico, mesmo quando parecemos “ponderadões”. Não à toa nesse período em que estamos à beira de todos os colapsos — da democracia liberal, do capitalismo, do clima, das relações tradicionais —, a figura do “isentão” se tornou tão desprezada. 

Como indicam o ato em São Paulo no último dia 25 e o encontro de Trump, Milei, Bukele e Liz Truss na convenção mais recente do CPAC (Conservative Political Action Committee), estamos diante de uma extrema-direita que está longe de ser domesticada e compreendida pelo vocabulário que herdamos dos fins tanto da Segunda Guerra quanto da Guerra Fria. Como deixa evidente essa crônica do jornalista argentino Juan Elman, num mundo em que o identitarismo é identificado com gênero, sexualidade e raça minoritários, a extrema-direita talvez seja o espaço mais identitário que haja na contemporaneidade. 

Precisamos saber desarticular esses discursos não fazendo as mesmas associações atrapalhadas e aprender a reconhecer de onde saem seus usos do passado, para que fins servem. Precisamos mobilizar as palavras que por ora temos para desacomodar os confortos que muitas delas nos provêm antes que as palavras dos outros nos deixem sem ter o que dizer.  


Renata Dal Sasso é professora da Universidade Federal do Pampa e que tenho a newsletter Correio do Sul do Sul.

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