Ensaio

Um feriado para lembrar, ou melhor, para não esquecer

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Um feriado para lembrar, ou melhor, para não esquecer Foto: Fernando Seffner

Das muitas formas de conhecer um país, uma delas é examinar sua lista de feriados nacionais. Quem ou o que se homenageia? O que é considerado importante de ser lembrado? No caso da Argentina, há semelhanças óbvias com o Brasil. É o Natal, a sexta-feira santa, o dia da independência, o dia da morte de uma figura histórica – no Brasil Tiradentes, na Argentina Sarmiento –, o ano novo, o dia do trabalho (ou do trabalhador), o dia de alguma santa – no caso brasileiro, Nossa Senhora Aparecida, no caso argentino, Imaculada Conceição de Maria. E há diferenças abissais com o Brasil. Quero tratar aqui de um feriado argentino que ocorre no mês de março, o que mais ainda nos ajuda a mostrar da sua importância para o caso brasileiro. É o dia 24 de março, dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça. Foi instituído por lei aprovada pelo Congresso em agosto de 2002, e foi tornado feriado nacional por outra lei em março de 2006. 

Examinando os artigos das duas leis, há três tópicos que fazem pensar no caso brasileiro. Primeiro, aquele que afirma que o dia 24 de março fica inscrito na lista de feriados nacionais, com o nome de Dia Nacional em Memória da Verdade e da Justiça, em homenagem às vítimas do processo ditatorial militar iniciado naquela data em 1976. Segundo, quando se diz que as autoridades educativas das diferentes jurisdições acordarão na inclusão nos respectivos calendários escolares de eventos que consolidem a memória coletiva da sociedade, gerem sentimentos contrários a todo tipo de autoritarismo e patrocinem a defesa permanente do Estado de Direito e a plena vigência dos Direitos Humanos. Terceiro, quando se estimula o poder executivo nacional a providenciar, nas diversas áreas da sua competência, a execução de atividades específicas, no mesmo sentido que o previsto para a comunidade educativa escolar. Vale lembrar que a última ditadura na Argentina se instala por golpe militar em 24 de março de 1976, e se dá por encerrada em 10 de dezembro de 1983, quando o presidente eleito, Raúl Alfonsin, toma posse.

Há um consenso internacional, inclusive juridicamente validado, de que a ditatura militar argentina cometeu todo tipo de violações de direitos humanos e praticou largamente o terrorismo de estado. Os anos do governo militar foram marcados por sequestro e desaparecimento de pessoas, tortura, morte, estupros de prisioneiras, exílio forçado, apropriação de menores, políticas deliberadas de segregação escolar, roubo de bens dos mortos e desaparecidos, privilégio a grupos privados, corrupção nas compras públicas, uso indiscriminado da censura, queima de livros na forma de fogueiras a céu aberto, restrição da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão política. Ao final do período, já em desgaste, o governo militar se envolveu na chamada Guerra das Malvinas – uma guerra, diga-se de passagem, justa, pois as Ilhas Malvinas são efetivamente argentinas – que provocou a morte de grande número de jovens soldados, e uma derrota humilhante. Tudo o que foi feito pelos militares foi feito em nome de deus, da pátria e da família, como expressamente afirmado por escrito e registrado em vídeos pelos comandantes das forças armadas em muitos momentos. Conhecemos bem isso no Brasil.

Mesmo alguém muito distraído, ao caminhar por Buenos Aires, se verá interpelado por marcas que não o deixam esquecer que este país sofreu uma ditadura brutal. Fui tomar o ônibus frente à sede de um grande banco no centro, na calçada estavam inscritos os nomes dos funcionários daquele banco que foram sequestrados e mortos pela ditadura. Agendei uma conversa com colega da universidade e fomos tomar mate em uma praça, bairro residencial afastado do centro. Ali me defronto com uma fileira de árvores, plantadas pela associação de moradores, a lembrar os nomes dos vizinhos que foram mortos durante a ditadura. Vou observar atividades em uma grande escola normal aqui, e lá encontro placas que indicam o nome das alunas e ex-alunas que foram mortas pela ditadura. Caminhando a esmo em uma rua qualquer, vou apertar o cadarço do tênis, me deparo com uma placa que indica que naquela casa, aonde estou apoiando o pé na parede frontal, viveu uma mulher, liderança feminina detida e morta na ditadura. A casa é simples, igual a tantas outras na rua. Estou subindo a escada rolante do metrô me encanto com um friso ao longo da parede que mostra pares de tênis unidos pelos cadarços e logo me dou conta os cadarços formam as palavras memória, verdade ou justiça, alternadamente.

Fotos: Fernando Seffner

Tais marcas, estimuladas pelo movimento de verdade, memória e justiça, não se restringem à ditadura 1976-1983. Tal como no Brasil, aqui houve outros momentos em que se viveu em ditaduras. Fui assistir uma palestra no Museu Penitenciário, antiga prisão feminina já desativada. Na entrada me deparo com uma placa que indica que ali, durante a ditadura de 1966, ficaram detidas pelo terrorismo de estado mulheres militantes populares. Grafites pelas paredes com as inscrições “são 30 mil”, a indicar o número provável de desaparecidos assassinados pela última ditadura, bem como a inscrição NUNCA MAIS, são abundantes pela cidade. Saindo do tema das memórias de ditaduras, pela cidade se encontram outras menções à memória. Frente a uma igreja, uma placa lembra os mortos da epidemia de febre amarela de 1871, a mais devastadora de todas. Em um edifício residencial simples está indicado que ali morou por muitos anos o escritor Júlio Cortázar. Em muitos outros prédios se indica uma moradia ou um local de trabalho de pessoas que não chegaram a ser extremamente conhecidas, mas ali naquele local eram uma referência. Cafés e bares antigos são repletos de placas que lembram eventos ou pessoas. Prédios novos trazem a indicação do que havia ali antes. Placas de rua indicam o nome anterior da via pública.

Mas, decididamente, o acento maior do dia nacional da memória pela verdade e justiça recai sobre as violações em direitos da última ditadura militar. O movimento que talvez mais tenha ficado conhecido no mundo inteiro neste tema e neste enfrentamento com a ditadura é o das Madres de Plaza de Mayo. Chamadas pelos militares da ditadura de “Locas de Plaza de Mayo”, elas tornaram seu ritual de caminhar na praça algo com força tão poderosa, que se pode dizer ajudaram a derrubar uma ditadura, a condenar assassinos e a esclarecer desaparecimentos. Todas as quintas-feiras, entre 15h30min e 16h30min, elas fazem seu percurso circular, na Plaza de Mayo. A primeira marcha que participei foi a de número 2389, em 25 de janeiro de 2024, um dia depois do El Paro de 24 de janeiro, em que algumas haviam estado também. Retornei a participar na marcha 2392 em 15 de fevereiro, onde havia grande número de turistas – semana do carnaval – e na marcha 2395, em 7 de março, bastante concorrida por lideranças feministas, pois aconteceu um dia antes do 8M, onde uma das madres fez uma fala.

Há uma força evocativa enorme na recitação dos nomes dos desaparecidos e das desaparecidas, seguida da afirmação PRESENTE dita em voz alta, que se faz enquanto se dão voltas no entorno do monumento conhecido como Pirâmide de Mayo. Embora o burburinho de turistas e outras pessoas, basta juntar-se ao grupo que caminha, e logo a pessoa se vê contagiada pela energia do movimento circular. Muitas das madres já faleceram, as que estão vivas são todas muito idosas, fazem a caminhada levadas em cadeiras de rodas. Mas a força do movimento gerou grande conjunto de associações, inclusive de jovens, que asseguram o futuro da causa. O reconhecimento internacional delas é algo sem precedentes, o que ajuda em sua causa, e que foi motivo delas ajudarem na causa de outros movimentos similares em outros países. As faixas postas no entorno do monumento, bem como as falas que acontecem após a caminhada, estabelecem conexões entre sua busca pelos desaparecidos e questões que envolvem democracia e direitos humanos no tempo presente. Não é uma causa que ficou presa no passado, ela estabelece diálogo o tempo todo com o contemporâneo. Em um dos dias em que participei da marcha, escutei os jovens cantarem “Olê Olê Olê Olá; Junto a las madres; Vamos a marchar; Por um projecto popular”. É por conta desse esforço em estabelecer conexões entre episódios do passado e questões políticas contemporâneas que as Madres da Plaza de Mayo aparecem a falar em eventos atuais, e têm sempre algo a dizer. Elas não estão nestes eventos apenas a recordar sua histórica luta. Para além disso, elas manifestam impressões sobre debates contemporâneos que se articulam com sua luta histórica.

Fotos: Fernando Seffner

Dentre as muitas associações criadas diretamente pelas Madres ou em seu entorno, fui visitar a “Casa Nuestros Hijos, la Vida y la Esperanza”, da associação Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora. A casa fica em um dos prédios no enorme terreno que antes abrigou a ESMA Escola de Mecânica da Armada, local tristemente célebre pelas torturas e violações de todo tipo na última ditadura. Hoje, no conjunto de prédios que a compõe, se alocam apenas instituições dedicadas aos direitos humanos, aos povos indígenas, à memória e a políticas públicas de cuidado. A Casa Nuestros Hijos abriga uma mostra permanente, que inclui objetos, depoimentos, documentos, notícias de jornal, instalações didáticas e salas para atividades de diálogo e formação, tudo em torno do tema dos desaparecidos e desaparecidas. Tive a oportunidade de acompanhar uma visita guiada com mediação, em evento ligado ao dia nacional da memória pela verdade e justiça. Ao sair, era um final de tarde, caminhei pelo enorme terreno que já foi área totalmente militar, olhando cada prédio, sua utilização original, sua atual destinação. É impossível não se emocionar com a força destes movimentos sociais aqui, e com as mudanças que já conseguiram provocar. E causa certo desânimo pensar o quanto ainda temos que caminhar nisso no Brasil.

A cada mês de março, por conta do 31 de março que lembra nosso golpe militar de 1964, que hora faz 60 anos, escutamos no Brasil afirmações tanto em torno de que “não devemos remoer o passado” quanto afirmações de que “foi uma guerra e ambos os lados cometeram crimes”. Tais afirmações esquecem que os militares brasileiros, com seu conhecido pouco apego à legalidade, seu desprezo pela democracia, e achando-se melhores e mais corretos do que os demais, derrubaram um governo legalmente eleito, instalaram um regime de terrorismo de estado, violações de direitos, tortura, morte e censura. É em parte por esquecer o passado que nos vemos a todo instante ameaçados pelos militares e seus aliados de ocasião, a perturbar nossa trajetória democrática.

Finalizo reiterando o que considero, na proposição do Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça da Argentina, o elemento mais interessante. É uma data para realizar eventos que consolidem a memória coletiva da sociedade, gerem sentimentos contrários a todo tipo de autoritarismo e patrocinem a defesa permanente do Estado de Direito e a plena vigência dos Direitos Humanos. Aqui a lembrança do golpe militar de 1976, que veio acompanhado de terrorismo de estado, mortes e desaparições, é feita em nome da preservação de um bem maior, o estado de direito democrático. O que me deixou profundamente emocionado nas três marchas em que participei das Madres de Mayo foi perceber a força da valorização de cada vida, ali nomeada. Chamar pelo nome, dizer em voz alta PRESENTE, é evitar a banalização da vida, evitar sua desvalorização e seu esquecimento. Certamente, isso é algo que podemos aprender com os movimentos sociais aqui da Argentina.

Este artigo é o primeiro de dois sobre o tema do feriado Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça da Argentina. No próximo vou relatar as manifestações e as marchas que ocorreram em Buenos Aires no domingo dia 24 de março de 2024, e algumas das atividades nos dias anteriores, em que participei, em um bairro e em uma escola da cidade.


Fernando Seffner é professor da Faculdade de Educação UFRGS.

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