Ensaio | Parêntese

Marília Kosby: Diário de alguma guerra

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Marília Kosby: Diário de alguma guerra 06 de dezembro de 2019 Visita técnica a Pacaraima.  Depois do almoço, vamos até a fronteira com a Venezuela, que fica em um dos limites do perímetro urbano da pequena cidade – construída dentro da terra indígena São Marcos, região do lavrado amazônico, norte do estado brasileiro de Roraima, onde vivem cerca de seis mil indígenas das etnias Macuxi, Taurepang e Wapichana. De longe, avistamos os barracões do exército. O rugido da guerra em nossas memórias inenarráveis.  A fronteira é seca e a cidade venezuelana mais próxima é Santa Elena de Uairén. Deambulamos pelos marcos de fronteira, fotografamos a paisagem de savanas e montanhas do país vizinho, sentamos nas escadarias, onde estão hasteadas as bandeiras dos dois países, a observar a fila de carros venezuelanos que são deixados à beira da fronteira, enquanto seus donos entram em Pacaraima para comprar fardos e fardos de mantimentos. Observamos os carros que voltam para a Venezuela, muitos buzinando e comemorando a fartura do retorno. A grande maioria é de carros particulares acima do padrão popular. Mas há também caminhonetas velhas e enferrujadas, parecidas com os veículos que eu via pelo Rio Branco, lá na fronteira do Uruguai com o Brasil, quando era criança. As caminhonetes vão carregadas para abastecer pequenos comércios locais, do interior da Venezuela. Voltamos para o hotel. O sol nos manda recolher. Entardece e queremos caminhar um pouco, andar pela cidade, passear, flanar. O professor que nos guia, alunos e professoras, insiste em jantarmos em um restaurante na esquina do hotel. Mas nós queremos andar, nós queremos ver as pessoas, sentir as ruas. O professor consente, nos acompanha. Atravessamos o pequeno centro comercial de Pacaraima, esvaziando-se de pessoas e com as ruas cobertas pelo lixo do dia. Ainda há concentração de venezuelanos e de venezuelanas, comercializando e consumindo comidas na rua. Alguns de nós compram arepas, depois seguimos até uma panquecaria. Os donos do estabelecimento, gaúchos saídos do centro-norte do Rio Grande do Sul, na primeira década dos anos 2000. Depois de terem passado por Goiás e Mato Grosso – trajeto corriqueiro entre os gaúchos que se instalam em Roraima – viram possibilidade de crescimento econômico na pequena, controversa, mas efervescente Pacaraima.  No caminho de volta para o hotel, alguns de nós resolvemos parar em um bar-pub, aproveitar que era sexta-feira. Na primeira rodada de caipirinhas, retorna um aluno, com recado do professor coordenador da viagem: “Não é recomendado que nós fiquemos na rua por essa hora (eram 20h). Tem muitas denúncias de tráfico de humanos nessa região de fronteira e o professor Jorge tem muita cara de gringo, com essa pele branca e esses olhos claros. E a senhora também, professora (eu), branquinha assim e com esse sobrenome de gringo, é bem do que eles gostam.”. Pausa para vertigem.  Cheguei em Boa Vista em outubro. Em finais de agosto estava voltando ao Brasil, depois de um ano na Bélgica, onde fiz um Pós-doutorado. Pelas ruas de Liège, era abordada em árabe, por mulheres imigrantes e refugiadas sírias, iranianas, jordanianas, […]

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06 de dezembro de 2019 Visita técnica a Pacaraima.  Depois do almoço, vamos até a fronteira com a Venezuela, que fica em um dos limites do perímetro urbano da pequena cidade – construída dentro da terra indígena São Marcos, região do lavrado amazônico, norte do estado brasileiro de Roraima, onde vivem cerca de seis mil indígenas das etnias Macuxi, Taurepang e Wapichana. De longe, avistamos os barracões do exército. O rugido da guerra em nossas memórias inenarráveis.  A fronteira é seca e a cidade venezuelana mais próxima é Santa Elena de Uairén. Deambulamos pelos marcos de fronteira, fotografamos a paisagem de savanas e montanhas do país vizinho, sentamos nas escadarias, onde estão hasteadas as bandeiras dos dois países, a observar a fila de carros venezuelanos que são deixados à beira da fronteira, enquanto seus donos entram em Pacaraima para comprar fardos e fardos de mantimentos. Observamos os carros que voltam para a Venezuela, muitos buzinando e comemorando a fartura do retorno. A grande maioria é de carros particulares acima do padrão popular. Mas há também caminhonetas velhas e enferrujadas, parecidas com os veículos que eu via pelo Rio Branco, lá na fronteira do Uruguai com o Brasil, quando era criança. As caminhonetes vão carregadas para abastecer pequenos comércios locais, do interior da Venezuela. Voltamos para o hotel. O sol nos manda recolher. Entardece e queremos caminhar um pouco, andar pela cidade, passear, flanar. O professor que nos guia, alunos e professoras, insiste em jantarmos em um restaurante na esquina do hotel. Mas nós queremos andar, nós queremos ver as pessoas, sentir as ruas. O professor consente, nos acompanha. Atravessamos o pequeno centro comercial de Pacaraima, esvaziando-se de pessoas e com as ruas cobertas pelo lixo do dia. Ainda há concentração de venezuelanos e de venezuelanas, comercializando e consumindo comidas na rua. Alguns de nós compram arepas, depois seguimos até uma panquecaria. Os donos do estabelecimento, gaúchos saídos do centro-norte do Rio Grande do Sul, na primeira década dos anos 2000. Depois de terem passado por Goiás e Mato Grosso – trajeto corriqueiro entre os gaúchos que se instalam em Roraima – viram possibilidade de crescimento econômico na pequena, controversa, mas efervescente Pacaraima.  No caminho de volta para o hotel, alguns de nós resolvemos parar em um bar-pub, aproveitar que era sexta-feira. Na primeira rodada de caipirinhas, retorna um aluno, com recado do professor coordenador da viagem: “Não é recomendado que nós fiquemos na rua por essa hora (eram 20h). Tem muitas denúncias de tráfico de humanos nessa região de fronteira e o professor Jorge tem muita cara de gringo, com essa pele branca e esses olhos claros. E a senhora também, professora (eu), branquinha assim e com esse sobrenome de gringo, é bem do que eles gostam.”. Pausa para vertigem.  Cheguei em Boa Vista em outubro. Em finais de agosto estava voltando ao Brasil, depois de um ano na Bélgica, onde fiz um Pós-doutorado. Pelas ruas de Liège, era abordada em árabe, por mulheres imigrantes e refugiadas sírias, iranianas, jordanianas, […]

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