Resenha

A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta

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A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta Imagem de divulgação

A água é uma máquina do tempo é o primeiro livro de Aline Motta e meu primeiro contato com a obra dessa artista que me capturou desde a primeira linha, desde a primeira imagem. O livro é uma mistura de ensaio, pesquisa, poesia, memória, reflexão e obra de arte sobre as vidas das mulheres da família de Aline, que confirma a força de se abordar questões coletivas através de mergulhos pessoais e íntimos. Fiquei imantada, com gosto de quero mais (ainda bem que a internet existe e as lacunas podem ser preenchidas rapidamente).

A tataravó Ambrosina teve sete filhos, morreu em 1894 aos 37 anos, de tuberculose segundo a certidão de óbito, talvez de susto durante a Revolta da Armada, segundo “a história que contam”. [Lembrei de minha vó, que morreu de Parkinson, mas sempre tive a impressão de que morreu de tristeza…]

Contemporânea de Machado de Assis e moradora de uma casa em frente a um convento, Ambrosina talvez ouvisse o toque da roda dos enjeitados – roda que também aparece no conto “Pai contra Mãe”, do qual a artista seleciona alguns trechos para traçar um genial mapa da cidade, em que frases se transformam em ruas por onde circulam personagens, escritores famosos e antepassados.

“Nem todas as mães vingam”, diz a autora a respeito de Ambrosina, parafraseando o conto de Machado em que o caçador de escravizados, tendo presenciado o aborto da mulher grávida capturada, afirma que “Nem todas as crianças vingam”. E nem todas as filhas vingam, como a tia-bisavó Michaela Iracema depois de ser raptada e violentada aos treze anos, em 1891, e em cujo ventre nenhum feto vingaria desde então: “Mas o que deixou Ambrosina mesmo sem ar foi saber que a única solução para aquela desonra era lutar para que a sua filha se casasse com quem a tinha violentado. Entre o melhor e o certo, a escolha era cumprir a lei.”

Além dessas águas remotas, entramos em contato com memórias mais recentes, de quando o pai de Aline a levava para a aula de natação e os coleguinhas se perguntavam se ela era adotada. Ou de um dia em que uma desconhecida lhe ofereceu dinheiro na rua, para ajudar a família. O presente mostrando que o passado é logo aqui: “violência como princípio/ racismo como base/ genocídio como meta”.

Também mergulhamos com Aline no luto pela morte da mãe, na descoberta de um diário escrito por ela trinta anos antes de morrer e no estranhamento causado por todas essas camadas superpostas.

O livro é lindo, vivemos na pele a vontade de inverter a lógica do tempo e de sermos ancestrais de nossos antepassados (uma espécie de redenção retrospectiva?, de cura intergeracional?), como Aline disse muito melhor do que eu:

“Se eu soubesse teria soprado um par de pulmões

no lugar do seu útero

E esse par extra você o teria doado em vida

para Ambrosina

que poderia assim respirar o vento da eternidade

que não termina no dia seguinte

Inverter a lógica dos embriões

A filha que vira uma ancestral da mãe

memória e veículo

A água é uma máquina do tempo”.


Julia da Rosa Simões é tradutora e historiadora, autora de A estranha ideia de família (Arquipélago, 2022).

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