Resenha

Afromarxismo: um intelectual livre

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Afromarxismo: um intelectual livre

Quem conhece o Luiz Maurício Azevedo como crítico, também deveria conhecê-lo como prosador. Não, não era isso. Quem conhece o Luiz Maurício Azevedo como crítico sabe o que esperar quando abre um livro dele. Sumariamente: agudeza (que é um tipo específico de inteligência), lucidez sobre de que lado está nas batalhas, criatividade, audácia para encarar temas desconfortáveis, erudição (muitas vezes uma erudição mais atualizada do que a média da inteligência brasileira) e um estilo firme que combina humor e crítica. Não tive nenhum desapontamento em Afromarxismo: fragmentos de uma teoria literária prática, lançado no fim de 2022, pela Editora Sulina.

Trata-se de um belo conjunto de ensaios e textos de intervenção, além da reunião de algumas críticas literárias publicadas anteriormente em jornais. Em linhas gerais, o livro postula a possibilidade de um intelectual livre, numa perspectiva negra e marxista, o que implica ter clareza sobre sua herança como pensador e enxergar as dificuldades que o capitalismo impõe a quem simplesmente busca divergir numa sociedade administrada. Essa tensão, essa resistência, que eu poderia chamar de emancipação, percorre todo o conjunto. Ou seja, em grande parte do livro, Luiz Maurício é o intelectual livre que postula.

O crítico não está confortável com a maneira com que as obras de autores negros é consumida nas universidades. “Os negros foram transformados em commodities nas universidades. Essa operação retornou-nos, negros, simbolicamente, à condição de mercadorias.” Não está confortável com a banalização da expressão “racismo estrutural”, como salvo-conduto e diluidor das práticas e leituras racistas. Desconfia das resenhas laudatórias (que a tudo dizem “necessário”), das libertações que não se apresentam como anticapitalistas e do “resgate de uma suposta ancestralidade africana comum a todo povo brasileiro”. Em um dos momentos mais felizes do livro, argumenta que não há saída fora do marxismo negro, sobretudo para os brancos. Se não parafraseio mal o argumento, só haveria liberdade possível para aqueles que vivem além da ideologia branca confortável e para aqueles que percebem que as noções marxistas servem como nunca para ver e analisar o mundo em profundidade. (Importante lembrar que há vinte anos o grupo de rap Racionais MC’s concluía, em suas duas obras-primas, Sobrevivendo no inferno e Nada como um dia após outro dia, algo parecido, que sintetizo: como não estamos sob a tutela do Estado e como não estamos ao alcance da lógica da mercadoria, a força dessas ideologias não nos afeta tanto, e por isso vemos mais.)

Falando em “ver mais”, Luiz Maurício Azevedo acende ainda alguns alertas quanto ao atual cenário da literatura de autoria negra no Brasil. O primeiro deles, ecoando um tanto o Benjamin de “O autor como produtor”, chama a atenção para a necessidade de que o circuito literário da literatura negra se consolide também a nível editorial, que não dá pra confiar no mercado, controlado por brancos, e seu limite imenso de fetichização. O segundo, que uma literatura só se fortalece com a crítica franca e aberta, na trilha de bell hooks, e que as práticas de compadrio e condescendência se mostram, mais cedo ou mais tarde, grandemente danosas.

Caminhando para o fim e relendo minha crítica, percebo que ficou muito mais ranzinza do que o livro resenhado. Isto é, não fiz jus ao êxito de Azevedo de combinar radicalidade e ironia numa toada em que a leitora e o leitor não largam o fio até o fim dos textos e da obra – salpicada também de exemplos reais desconcertantes. Também preciso dizer, para que fique claro, que o “outro” do livro somos nós, brancas e brancos, tanto que há textos que dialogam especificamente com leitoras e leitores negros, como “Afromarxismo: por uma razão feita de sal”. O ponto é que o estabelecimento desse outro não constrange o crítico de realizar a crítica também para com os seus, o que significa dizer, em tempo de publicidade ubíqua, que se trata de um crítico sério. De minha parte, tenho discordâncias pontuais em algumas passagens, e um dos ensaios mais ousados do conjunto, “A hipótese do rato: valor e medo na literatura afro-brasileira contemporânea”, não me pareceu tão amarrado quanto os outros (o que pode inclusive significar que seja o melhor do livro…)

De todo modo, e creio que tenha ficado evidente, são críticas minúsculas diante do vigor do livro, que pretendo já incorporar no debate com colegas e orientandos. Como só os estúpidos fazem paráfrase de poesia, findo meu comentário com um dos trechos poéticos do livro, de que minha crítica não poderia dar conta. Tomem lá: “A liberdade coletiva não virá pelas mãos dos prisioneiros entediados com os limites do pátio expandido. Ela virá daqueles que, vivendo no porão, já não negociam o sonho de seu contato com a luz. E é claro que estou entre eles. Sou aquele ali no canto, cavando a terra, com uma colher pequena.” Não é uma beleza?


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

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