Resenha

Beleza e necessidade

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Beleza e necessidade Foto de Mírian Fichtner

A gente pode ser fisgado pela beleza, ela mesma, que fica vibrando no nosso olho por muito tempo – aquela luz, aquela composição, a distribuição dos elementos no quadro da imagem, aquela cor viva que parece querer sair da tela. 

Ou a gente pode ser capturado pelo tamanho da nossa perplexidade, ao sermos informados, com lisura e clareza, que Porto Alegre e o Rio Grande do Sul têm centros de religião afro-brasileira em tanta quantidade. É mesmo? É certo? Mas e como é que eu não sei, não vi, não me dei conta?

O que não vai acontecer é o espectador passar incólume pela experiência de assistir ao documentário Cavalo de santo, dirigido por Carlos Caramez (também roteirista) e por Mirian Fichtner (a responsável pela fotografia). Não vai. 

Veja em cavalodesantofilme.com.br

Ocorre, na retina de quem o vê, uma dessas experiências de autodescoberta, banais e poderosas. 

Havia já ocorrido comigo quando conheci o poderoso álbum de fotos de mesmo nome, Cavalo de santo, lançado há poucos anos (e em vias de relançamento agora). Num sentido digamos abstrato, eu também tinha lido que o Rio Grande do Sul era o estado com mais terreiros e fieis das várias religiões abrofrasileiras. Assim dizem de fato os dados do IBGE. 

Mas isso, como o racismo, é coisa difícil, talvez impossível de perceber por parte de quem está do lado de cá da cortina de invisibilidade que separa o Rio Grande do Sul que se pensa como branco e europeizado. 

Como isso acontece? Por quê? 

Uma boa parte da resposta se encontra no documentário, em declarações de antropólogos especializados, como Ari Pedro Oro, de sociólogos e pensadores da questão, gaúchos ou não. Entre as causas, algumas se destacaram para mim, que evoco algumas sem maior rigor. 

Uma: talvez aqui os fieis tenham mais clareza da necessidade de declarar sua religião. Outra: diferentemente de Salvador, cidade famosa pela grande presença negra na cultura geral, cidade em que há terreiros muito antigos, costuma haver muitos fieis por terreiros, ao passo que aqui, no Sul, talvez haja menos pessoas por terreiros. Outra ainda: no Rio Grande do Sul, há derivações, divisões, ou novas formas de religião, adaptadas ao mundo simbólico do estado, que não existem noutras partes. 

Se no Rio Grande do Sul há renegação da cultura negra? Alguma dúvida?

Eu respondo com apenas dois exemplos: um, a localização definida pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre para o carnaval da cidade – numa das bordas mais remotas da geografia. Se pudessem ter mandado para mais longe ainda, talvez tivessem mandado para lá. Isso enquanto o mundo tradicionalista, por exemplo, ganhou espaço na parte mais nobre da beira do rio, no Centro.

O outro é tão cruel quanto, embora menos visível. Conta o historiador Walter Spalding, em sua Pequena história de Porto Alegre (editora Sulina, 1967), o triste destino da Igreja do Rosário, construída a partir de 1820 na Capital e mantida pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, caracteristicamente com pessoas negras, que tinham autonomia administrativa em relação à Cúria, à cúpula da Igreja, e acolhiam tanto o culto ortodoxos católico, quanto um outro culto, heterodoxo, que mesclava catolicismo romano com elementos afro-brasileiros, uma forma que a antropologia nos ensina a entender e respeitar. 

A Irmandade fora criada em 1786, por 220 membros: 100 indivíduos livres, 16 forros e 104 escravos. Mil, setecentos e oitenta e seis. A população total de Porto Alegre então seria de umas 3 mil pessoas, no total. 

Essa autonomia foi boicotada e finalmente destruída, fisicamente destruída, mediante um processo que, olha, dá vergonha. Escutem, quer dizer, leiam o que ele diz: 

“D. João Becker resolveu que também a Igreja do Rosário ficasse pertencendo não à Irmandade, mas à Cúria Metropolitana. Os pretos se opuseram e o culto metropolita [D. João Becker] incentivou o ingresso de brancos na Irmandade. E, um belo dia, lá por 1925, o número de brancos excedia o de pretos. E contra o voto destes, a Igreja passou a pertencer à Cúria. E foi demolida, contra o parecer de muita gente, sendo construída em seu lugar a moderna e feíssima igreja que hoje ocupa o lugar da antiga e histórica Igreja dos Pretos de Nossa Senhora do Rosário” (p. 253).

Em 1930, esta igreja era a mais antiga de Porto Alegre. E foi destruída. 

A história desse crime, contra o patrimônio material da cidade e contra o patrimônio imaterial da humanidade, tem capítulos terríveis. Um deles é que a Igreja chegou a ser protegida por tombamento, no então Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico, em 1938, e depois alijada dessa proteção, por ato do presidente da república, em 1941. (Sim, Getúlio Vargas.) Querendo conferir um estudo sobre o caso, veja aqui

Quando alguém quiser saber de exemplos de discriminação, de um processo poderoso de renegação e de invisibilização, aí estão dois exemplos inequívocos. Daí, também, uma das virtudes essenciais do filme de Caramez e Mirian Fichtner. 

Tudo isso carrega em si uma grande força, mas creio que essas informações e depoimentos e mesmo essa tragédia histórica, da demolição da igreja, não superam, para nós, hoje, a força das imagens, a qualidade delas, o impacto delas sobre o espectador. São um necessário documento, como uma carteira de identidade coletiva, que ajuda a entender não apenas as religiões que são o objeto do documentário, mas a vida de toda a coletividade no sul do Brasil, que precisa aprender a se ver com mais honestidade e justiça.


Luís Augusto Fischer é professor de Literatura na UFRGS, autor de, entre outros, “Dicionário de porto-alegrês” e “Literatura brasileira: modos de usar”, ambos pela L&PM . É curador da revista Parêntese.

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