Resenha

Mas em que mundo eu vivo?

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Mas em que mundo eu vivo? Foto: reprodução

Quanto mais infame é sua vida, mais o homem se importa com ela; ela se torna então um protesto, uma vingança de todos os instantes.

(Balzac)

O livro Mas em que mundo tu vive?, de José Falero, é um baita livro de crônicas! Isso significa dizer, antes de mais nada, que temos muito bem definida nos textos a instância da “persona”. A persona, em língua de gente, é uma espécie de narrador com quem podemos tomar satisfação no meio da rua, a quem podemos eventualmente arguir, com quem podemos concordar ou discordar como se fosse uma outra pessoa. Diferente do narrador, a persona é uma voz que se mistura com a voz que publicamente relacionamos a determinado autor ou autora e, por isso, não está protegida pelo contrato da ficção como narradoras e narradores – se bem que essa autonomia da ficção em relação ao mundo está em causa atualmente, mas isso é outro assunto.

Assim, enquanto conhecemos nas crônicas passagens da vida atual e pregressa, ou seja, comentário do presente e rememoração – experiências, aliás, muito distantes daquelas do leitor de classe média (rico não lê) –, o eu que personifica essas experiências é construído na nossa frente, com sua visão de mundo, suas predileções, sua história, suas críticas. Estudei o gênero crônica por algum tempo e digo com alguma tranquilidade que não há boa crônica sem uma personalidade marcante, mesmo no mau sentido. As crônicas de Drummond não raro apresentam uma persona antipática e Nelson é reconhecido por destilar seu sarcasmo em O óbvio ululante e em A cabra vadia.

Voltando a Falero: se Vila Sapo (2019) é um precioso, mas curto, livro de contos e Os supridores (2020), uma maravilhosa e machadiana crítica sobre a enorme distância entre a periferia e o restante da cidade – apesar do sucesso, acho que o livro ainda não foi lido em sua justa medida; veja: Pedro, narrador e protagonista, se vale de Marx para embasar seu discurso empreendedor, vê se pode, com direito a uma piscada de olho para o leitor, entre marota e cínica, direto da cadeia, ao final do romance. Mas em que mundo tu vive? já nasce como um clássico da crônica, colocando Falero entre nomes como Rubem Braga, Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues e, mais recentemente, Antônio Prata. As qualidades todas do gênero estão ali em alta voltagem, e não me lembro, nos últimos anos, de um conjunto tão poderoso.

Mesmo sucintamente, é preciso analisar essa força. Primeiro: a existência da persona exige um sujeito capaz de experimentar o mundo. Até onde enxergo, o ocaso do gênero no Brasil teve a ver um tanto com o ocaso da experiência, num arco curto, remontando à vigência da modernidade, no século XX, e num arco longo, à existência do indivíduo burguês, desde Montaigne (aproveito para fazer o merchan do amigo Luís Augusto Fischer e seu livro Inteligência com dor, sobre as crônicas de Nelson Rodrigues, mas que traz interessantes leituras do pensador francês). No contemporâneo, o espaço de experiência encontrado por Antônio Prata são os territórios simbólicos do diminuto espaço de experiência do sujeito integrado, enquanto Falero encontra um espaço de experiência material em razão de não estar plenamente integrado à sociedade de consumo, num lugar “em que a modernidade não vai, por medo” (aspas arrazoadas do próprio autor). 

Não se trata de louvar a precariedade do Estado moderno brasileiro, mas de indicar que, como, por exemplo, o grupo de rap Racionais MC’s, que vai voltar ao papo daqui a pouco, Falero não cai no conto da mercadoria/do capital e das relações que esses estabelecem, o que é fundamental para que enxerguemos uma pessoa viva atrás do texto. Essa poderia, aliás, ser uma definição da crônica: crônica é o gênero literário que gera a impressão de que há ali uma pessoa viva. A sagacidade e o humor da persona de Mas em que mundo tu vive? também contribuem para essa vivacidade, como quando, agudamente, ele percebe a infinidade de botecos em “Eu entendo quem desiste” ou ri de si mesmo quando a amigo lhe dá uma “arriada” em “Leite derramado”.

Com o perdão do óbvio, é importante dizer também que, tal como o narrador, a corpo dessa persona é feito de linguagem, isto é, acompanhamos as idas e vindas da persona e de seu raciocínio pelo texto da crônica, mais conectada, por hipótese, ao Falero em carne e osso do que aos narradores de seus contos ou ao narrador de seu romance. Isso que parece uma trivialidade é, com efeito, uma estrutura delicada, pois a linguagem da crônica precisa ser tão viva quanto a voz por detrás dela, no que podemos concluir que a crônica é uma das linguagens literárias em estado de performance, que se desenvolve no tempo presente da leitura, estando, assim, bem próxima de alguns tipos de poesia (“Apenas o céu. Simplesmente o céu. O céu sem adereço. O céu bruto. O céu, que de tão real, quase ofende.”). Isto é, a linguagem que se dá no presente da leitura apresenta a si mesma e à persona construída por essa linguagem como instâncias vivas.

De novo, Em que mundo tu vive? tem essa fluência e, com muita felicidade, passa de um registro mais informal para um mais culto, com raros entraves (em geral, a voz da persona está em registro mais culto e o discurso direto em registro mais informal). É curioso como Falero consegue fluidez mesmo num registro “ponto pra mais” da formalidade, e essa alternância de registros é crucial para pensarmos em como os textos dialogam com o leitor. De maneira complementar, a forma criativa com que o autor reanima clichês, capta e cria expressões (“Porque quase todas as palavras que saem da nossa boca, já saem dando meia volta, procurando nossos próprios ouvidos” ou “este texto ia fazer a Bíblia parecer um microconto” ou “a habilidade de pecar debaixo de um nariz sem que um olho repare é talento inadquirível, com o qual se precisa nascer” e assim vai), subverte lugares comuns (como em “Passe livre”) etc. operam para essa vivacidade de linguagem e de pensamento que ele consegue, fazendo cócegas no espírito da leitora ou do leitor.

Aliás, espírito, ou esprit, ou wit, são também termos importantes para o mundo da crônica. Em português temos uma expressão boa para flagrá-lo, que é “presença de espírito”, com a qual nos referimos a pessoas que parecem sempre atentas ao mundo e às outras pessoas. Fulana ou fulano tem presença de espírito. A crônica parece carregar um pouco desse tônus e trabalhar a partir disso, ou melhor, nela há sempre uma persona viva no texto e que se vale de uma linguagem igualmente viva com a qual se constrói. Mas não só isso, é preciso que a crônica esteja em estado de resposta a um questionamento social para sua máxima eficácia, e esse parece ser um indício de que se tem vida ali. Dos gêneros literários, até por ser geralmente publicada primeiro em jornais, revistas e periódicos, a crônica é essencialmente pública.

Cabe então perguntar como as crônicas de Falero se colocam publicamente. De maneira mais geral, as crônicas do livro interpelam o espaço da opinião pública pelo ângulo daqueles que ficaram de fora da composição do Estado moderno brasileiro. Isto é, porque a exclusão e a violência estruturam ambos os lados, aquelas crônicas, embora possam ser lidas também ao sabor do exótico, nos dizem respeito profundamente, elas desvelam a violência comum que estrutura a nossa sociedade e a deles. Diferente dos livros anteriores, aqui o leitor e a leitora, explicitamente, somos nós que não sabemos em que mundo vivemos, enquanto em Vila Sapo e Os supridores às vezes nos perguntamos quem é o leitor que os livros projetam. De diversas formas o autor nos lembra das tensões envolvendo esses nós x eles, sobretudo porque boa parte das crônicas narra as investidas de Falero nos bairros de classe média de Porto Alegre ou os apertos de sua vida na periferia precarizada por quem está no centro. (De passagem, queria sublinhar que desconheço um escritor de crônicas do centro cujo “outro” seja o leitor de periferia. E que o cálculo de Falero ao escolher esse outro tem consequência que ainda precisam ser ensaiadas.)

Ao mesmo tempo, de maneira mais específica, mais local, mais no miudinho, mas por todo o livro, essa mesma interpelação se dá na presença constante da função conativa, aquela que chama e implica o outro desde a linguagem. O tempo todo o eu dos textos conversa com o leitor, imagina o que leitor esteja pensando, corrige o que o leitor poderia estar deduzindo etc. Se a leitora ou o leitor não se sentem movidos pelo movimento geral, Falero trata de, com mais ou menos força e elegância, levar o outro pela gola em meio às ruas e à dureza de transitar por lugares que gostariam de expeli-lo. Essa interlocução que, quando acontece nos outros gêneros, se torna traço a ser apontado no estilo de escritores, na crônica é bastante usual. Não tão usual, contudo, como já dito, é o “tu” com o qual se dialoga não ser tomado como um igual, como é o caso de Mas em que mundo tu vive?

Se eu tivesse que indicar o ponto que mais me anima no conjunto de crônicas, seria justamente este: a maneira como Falero lida com o leitor/a. Essa questão, aliás, foi também minha porta de entrada dos outros livros, como já ficou sugerido aqui. Me encanta a forma como Falero lida com o outro, que neste caso, pela classe social e pela cor de pele, é muito mais outro do que seria para mim ou outro indivíduo branco/branca de classe média. É muito sensível e habilidosa a maneira como ele varia a distância para esse outro, responde ou recusa suas demandas, incomoda ou adula, essa espécie de boia, de regulador, de mediação; pra mim este é o suprassumo da dialética do Falero. 

Por isso também me incomoda quando as crônicas derrapam para o melodrama (como em “Para não enlouquecer”, por exemplo), embora isso seja um traço comum de alguns cronistas. Em Rubem Braga, não raras vezes o lirismo se confunde com o melodrama, para minha tristeza. Nelson Rodrigues, por sua vez, com raízes trágicas e psicanalíticas, aprofunda o melodrama com enorme ganho. No estilo de Falero, acho que esse melodrama vai ser sublimado com o tempo. Enquanto algumas leituras acham a voz do livro “faca na bota demais”, eu acho faca na bota de menos. No sentido estilístico, eu queria ver mais Falero e as contradições de sua persona nas crônicas, um Falero que avance mais na subversão das regras da crônica (“Detesto regras. A maioria delas quer me ver morto.”) Se não me fiz claro, acho que o Falero tem tamanho pra isso.

Disso se conclui que eu não acho que Falero tenha chegado ainda a seu auge, mas é impressionante sua qualidade como escritor e o quanto seu estilo vem se apurando nesses três ou quatro anos. (Parece que foi ontem que ouvi pela primeira vez o Jocelito Zala falar dele e que o vi pela primeira vez, na Casa de Cultura Mário Quintana, num projeto do José Fernando Cardoso e meu, para uma fala do Luiz Maurício Azevedo…). Se colocar os três livros lançados até aqui na ordem em que começaram a ser escritos – Os supridores, Vila Sapo e Mas em que mundo tu vive? –, pra mim é evidente o quanto o ótimo escritor está se aprimorando e variando cada vez mais os seus recursos. 

Quando lemos Os supridores numa oficina que ministro, eu disse que pensava o romance como um Raio-X do Brasil, do Racionais, e que estava esperando o Sobrevivendo no Inferno do Falero. Pensando na comparação, ela se dá para mim por dois caminhos. Primeiro, na aposta de que o Falero pode produzir uma obra-prima literária que seja um marco tal como esse disco do Racionais foi para a música brasileira. Segundo, que a exuberância de sua literatura é ela mesma uma afronta para o mundo letrado, porque tudo foi feito para que o Falero não fosse um escritor. Então como ele pode ser um escritor melhor do que nós? As rimas extraordinárias do Brown são o mesmo lance. (Vale notar que o outro de Sobrevivendo no inferno são os manos, e não os boys.) Com o perdão de contrariar as expectativas, não acho que Mas em que mundo tu vive? seja o Sobrevivendo no inferno, de Falero. Mas tá chegando… E se pensarmos que o disco de 1997 do Racionais é o disco mais importante da música brasileira dos últimos trinta anos, se tem uma ideia do que pode vir da literatura de Falero.

p.s.: “AVC” é conto.


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

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