Resenha

Mil Folhas: um Ossainho Atlântico

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Mil Folhas:  um Ossainho Atlântico Foto: Janete Kriger

Caxias do Sul tem, sem dúvida, um lugar de destaque na economia do estado do RS, importância que se vislumbra também na cena cultural sul-riograndense da contemporaneidade. Na área da música é indispensável destacar os trabalhos de Valdir Verona, Chiquinho Divillas, Projeto Ccoma (Beto & Suas Máquinas segue ativo) assim como a movida percussiva extremamente forte na cidade.
 
A força percussiva nessa cidade é um capítulo à parte, atestando que se trata sem dúvida de um dos pólos mais ativos da percussão atualmente no estado. Ali os grupos Zingado, Bloco da Ovelha, Banda Marcial Cristóvão de Mendoza além do Samba Show dirigido por Mestre Batata bem como os tambores nos terreiros de matriz africana e ainda o Baque dos Bugres (em rearticulacão) vem movimentando continuamente o cenário percussivo da cidade. Agora mesmo, em novembro de 2023, realizou-se a 10ª edição do Aldeia SESC, sendo a segunda movida dos Tambores da Nossa Aldeia. Um grande encontro, realizado no dia 12/11, que reafirmou a pujança da percussão nessa cidade da serra gaúcha, com Regência da Mestra Alexsandra Amaral e Direção Artística de Richard Serraria.
 
Na área literária já há algum tempo o trabalho de Marco de Menezes vem se destacando com sua poesia abissal e de profundo cuidado estético. Nesse território literário, destaco por hora o recente lançamento do jornalista Carlinhos Santos, com a obra Mil folhas, financiada pelo edital 2022 do Financiarte da Prefeitura de Caxias do Sul.

A obra tem duas águas, sendo a parte inicial mais “haikaileska”, baseada em imagens e priorizando achados fonéticos (palavra que chama palavra) e embaralhando sentidos, já que poesia também pode ser primordialmente sonido. Ou melhor, propondo invenção de sentidos a partir do ouvido, poesia em voz alta. São flashes curtos, transitórios e furtivos, uma poética do instante destacando momentos de poesia concreta em tempos de imediatismos virtuais.

AINDA

reviu
reflexos
nuances
do que ainda
não finda

Divulgação

O projeto gráfico merece destaque, a cargo do designer Marco Verdi. As ilustrações são fantásticas, feitas por Vivi Pasqual, colaborando demais para emprestar ludicidade à leitura. Remetem às vezes para o universo das xilogravuras de cordel noutras à estética mais do cartum, supremas incertezas concretas, ainda bem.

A segunda água dessa casa sólida e bem construída se desenvolve numa prosa poética em que as citações intertextuais são um caso à parte, escrita palimpséstica. Quase sempre há um pano de fundo feito vapor barato “leminskaindo” a reverberar múltiplas leituras feito Kind of Blue de Miles Davis encontrando Ferrez num Capão Redondo ecoando Tom Waits, Caetano e êxodos Salgados. Dá pra ouvir Itamar Pretobrás na leitura e ficar pensando em como tudo isso daria uma grande diversão, leitura de trechos do livro com vinis ao fundo e música ambiente. Chet Baker na neblina do Parque dos Macaquinhos, o fog serrano feito fumaça de pub, coisas de um eterno mais breve possível.
 
(…) Algo urgente. E assim, sim, partia não facilmente a cada dia, a cada instante, naqueles cinco minutos de abstinência. Restando a casa vazia, o portão cadeado, a prisão voluntária. Por temor, zelo ou desconfiança, morria a cada impedimento. O que não era fácil. Mas, na vertigem, profundamente libertador. Morrer assim no silêncio. No desvão.”
 
Ser tão em carne viva, sertões na serra em carnaval, Mil folhas para fazer menos insossa toda e qualquer cidade. Cidades são às vezes erráticas, mas o que as faz doces algumas vezes são invenções em palavras como na obra em questão, fita de 1000 grau, uma vida líquida e certa.

Por último: Mil folhas é um ossainho atlântico, um mar de palavras e certamente Ossain, orixá das folhas, rei das plantas está por toda parte dentro da obra abençoando também, “sem folha não tem festa, sem folha não tem vida”, como bem disse mana Bethânia.
 
A palavra também é capaz de espalhar vida saudável.

Ewé Ó orisá!


Richard Serraria é poeta, cancionista e tocador de sopapo.

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