Resenha

“O poema é sempre de esquerda”¹

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“O poema é sempre de esquerda”¹ Foto: Iluminuras/Divulgação

Em um ensaio sobre Grande sertão: veredas, “O romance de Rosa”, José Antônio Pasta Júnior nos lembra que, diferente dos mistérios, que “admitem unicamente culto e celebração”, os enigmas pedem decifração. Podemos desdobrar a hipótese: maus enigmas se comportam, no fundo, como mistérios, isto é, fingem puxar a cadeira, mas querem mesmo é ver os joelhos se dobrarem. Em outros termos, aparentemente requerem a curiosidade moderna, mas escondem a devoção arcaica. 

Não é nem de longe caso de o enigma das ondas, de Rodrigo Garcia Lopes (editora Iluminuras), que desde o primeiro poema, “Aéreo reverso”, desde o primeiro verso, “A palavra surfista desce a onda verso”, quer tratar com o leitor, e não doutriná-lo, quer trazer pra perto o leitor, não afastá-lo ou subjugá-lo. Este me parece o princípio regente do livro e uma das escolhas mais louváveis em tempos de pouca conversa e muito lacre.

Este princípio não se dá de maneira igual nas quatro partes do livro: língua, cujo centro é menos a metalinguagem do que os embaraços da cena literária contemporânea em meio ao império das celebridades; pandemonium, em que o escopo da primeira parte se alarga para falar centralmente sobre este momento de pandemia & fascismo, e suas implicações; loci, em que, salvo engano, há de novo um movimento para o amplo e os poemas tratam agora da tradicional matéria da poesia – tempo, vida, amor, mistérios e tais – no mundo, em lugares, sem a presença dos recortes das seções anteriores; e, por fim, mentis, a parte mais subjetiva do livro, seja no sentido das percepções, seja no sentido dos sentimentos. Eu até poderia indicar minha seção predileta, mas o que interessa é não perder de vista a variação dentro do que imagino ser a linha-mestra da obra. Assim, são de fato conjuntos de poema muito distintos entre si, mas todos mantêm certa disposição para o outro que caracteriza o enigma.

Um segundo e complementar movimento dessa disposição é certa vontade sincera de entender as coisas. Não é incomum que o eu do poema se movimente rumo a um canto de pássaro (“Acordei cedo, ouvindo um canto / que ainda não conhecia […]”), um drone (“[…] numa fresta de dia / ou vistas, como de um drone, do alto das montanhas”), ilhas, smartphones, metrô, pessoas, em que as referências literárias todas parecem subordinadas a essa gana de ver e pesar bem o que se apresenta. As sínteses de poeta estão lá – “Agora mesmo é um lugar que nunca envelhece”, do baita poema “Simultaneidade” –, mas até numericamente são muito menos presentes do que a busca, a dúvida, a sobreposição de elementos.

Há ainda, fechando meu esquema de leitura, uma sensação de forte presença da ironia – “a versatilidade infinita do intelecto oculto”, para Novalis –, como a própria base tropológica desse dialogismo com o leitor e com o mundo. A inteligência dos versos poucas vezes sedimenta, numa variação de ângulos que acaba por refletir também uma variação de registros do humor: a sátira, a blague, o nonsense, a ironia de situação, entre outras. O exemplo máximo no livro me parecem ser os epigramas de “Short Cuts: epigramas”, mas gostaria de deixar a leitora ou o leitor com o ágil piparote de “Meteoro”:

Se acalme, musa, que o mundo
Não vai acabar neste minuto.
O fim do império romano
Não foi de um dia pro outro.


Não foi você quem disse que o destino
Importava menos que a viagem?
Sua bagagem extraviou (não há quem ache)
Numa dobra de galáxia. Agora relaxe.

Em que pesem a excelência do livro e o prazer de sua leitura, talvez a variação de perspectivas gere, além de dialética, alguma irregularidade, fazendo com que convivam poemas extraordinários e ordinários, como “Mobydick” ou “Odisseia paulistana”. Esse sofisticado “à vontade” com a palavra, com a tradição e com um mundo, de erudição, agudeza e virtuosismo notáveis, talvez abra espaço para que, em alguns poemas, o princípio proposto pelo próprio poema não seja levado às últimas consequências, não seja radicalizado, e o mesmo ocorre com a composição das seções, em que poemas arrefecem a tensão obtida com determina sequência. 

Recusar-se a essas ordens, recusar a ordem do poema sobre seus versos e a ordem do livro sobre seus poemas, em tempos de fascismo, é uma escolha política? A lógica poética pode ser autoritária com autor ou deve ser combatida? Resta esse enigma.

¹Versos do livro resenhado. “O poema é sempre / de esquerda.”


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

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