Resenha

O Vazio a serviço da fome

Change Size Text
O Vazio a serviço da fome Foto: Bruno Mello

(…)
E é ali, somente ali,

onde descobrimos a salvação pelo vazio.
(Roberto Juarroz)

Penso naquilo que nasce da falha, da fissura. Um desejo, uma obsessão. Seriam os dois a mesma coisa? A vontade, ou melhor, a necessidade de preencher um vazio, ou melhor, ser preenchido pelo vazio em busca de preencher o Vazio, ainda maior, que nos constitui.

Penso, na verdade vejo, uma mulher cheia de buracos. Uma garçonete que equilibra pratos dentro e fora de si. Que se equilibra entre o que não tem e o que jamais poderá ter. Que serve, mais do que a um salão cheio, ao seu próprio desejo, esse cliente assíduo que chega, se senta e pede e exige e reclama e vindica e nunca vai embora. Uma garçonete que atende ao chamado do estômago, às demandas do peito, aos lábios da boca e da buceta e chama pelo que lhe falta. E geme e grita.

Vejo, na verdade sinto, o frango descendo pelas entranhas. Pode, um frango sem entranhas, um corpo sem órgãos, preencher o corpo obsessivo, o corpo de uma garçonete faminta por aplacar o vazio aterrador do Vazio? Por um breve momento, tudo se mistura, tudo se confunde: pele com osso com gordura com carne com cartilagem. Tudo parece retornar, talvez, ao útero, casa primeva como nenhuma outra, distante, em que dois eram um.   

Sinto, na verdade, imagino, que a garçonete se lembra da cabeça de seu amante entre as coxas enquanto devora as coxas do frango. Que se lembra da pequena morte que é o orgasmo enquanto coloca o frango mais fundo na garganta e anseia a ânsia e deseja morrer a morte grande, que é a ausência de desejos e, por isso, a ausência do Vazio e da dor do Vazio. Uma garçonete que não mais grita e fala, apenas silencia.

Imagino que “peça” possa ser sempre um pedaço da vida de alguém em pedaços. E, enquanto a garçonete dança, se desmonta pouco a pouco. Despe-se de suas roupas, de sua vergonha, da linguagem. Articula sua segunda chegada ao continente dos frágeis, buscando alguém para entregar o que lhe salva: o vazio, uma fome e sua obsessão ainda crua.


Garçonete: uma peça banquete, com atuação de Gabriela Barretto e direção de João Pedro Madureira, estará em cartaz no bar Ocidente (Av. Osvaldo aranha 760, Bom Fim, Porto Alegre), em apresentação única, no dia 22/11, quarta-feira, às 21h.


André Oviedo é poeta, nasceu em 1989, em São Paulo, onde mora. É autor de Formol (Selo DoBurro, 2014), corpo do poema (lançamento independente, 2017) e Estar perto de perceber alguma coisa (Editora Reformatório, 2021).

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.