Resenha

Tetein

Change Size Text
Tetein Tetein/Divulgação

Eu sempre soube o que faria como primeira medida se fosse eleito, sorteado ou assumisse como presidente ou rei do mundo: acabar com a publicidade. Apesar dos meus encantos e respeito ao mundo dos jingles, anúncios e audiovisuais, acredito que o centro do capitalismo – e outros sistemas e regimes de opressão – reside nesta ferramenta de persuasão e criação de necessidades. É a publicidade que retira a inocência e sequestra finalidades. A publicidade acaba com a arte e com o futebol. A publicidade acabou com a internet.

Eis que chega Ian Ramil, já no primeiro single do disco Tetein e detona o símbolo máximo da economia de mercado e celebra com uma grande ciranda de mais de mil pessoas que assistem “o shoping center queimar”. A estrofe já inicia com um cruzado no queixo: “quando a publicidade morrer e desintoxicar a felicidade” e segue refletindo sobre distinção de classe, privilégio de branquitude e o real significado do amor, para muito além do egoico das redes sociais.

É esse amor – terno, contundente, combativo, solidário e inquieto – que é celebrado em Tetein. Um amor surgido com o nascimento da primeira filha e que revela, intensifica e se reapaixona pela companheira. “Posso passar o dia olhando vocês”, é o mote da suspensão do tempo ao contemplar mãe e filha se alimentando mutuamente em Tetein, primeira faixa do disco, em possível referência ao balbucio da pequena Nina em seus primeiros sons.

Nessa mexida existencial, o “ser pai” hoje é objeto de questionamento a respeito da masculinidade tóxica, entranhada em nossa formação desde cedo. Eis o single e a obra de arte do videoclipe “Macho-Rey”, que “adora piada de negro e gay” e brada “seja homem”. O audiovisual, literalmente de uma plasticidade impressionante – complementa a canção com um sósia infanto-juvenil do adulto Ian, na fila imensa para embarcar no barco masculinidade, passando por rituais familiares capitaneados pelo tio-do-churrasco. 

Nas redes sociais, ao compartilhar essa produção impressionante, Ian desabafa algo como “pena que o Facebook não deixa mais viralizar estas produções”. Sim, o tempo tem sido cruel mesmo para artistas como Ian – branco, jovem homem classe-média cis heterossexual, advindo de uma família de músicos e produtores de sucesso, tendo ganho já um Grammy Latino pelo album anterior e com uma qualidade musical indiscutível. (Misturo aqui estes quesitos propositalmente, pois parece ser também a abordagem crítica e autocrítica que Ian Ramil vem buscando). Isso porque o mercado fonográfico segue concentrado em apenas três grandes conglomerados (Sony, Universal e Warner), porque a possibilidade de vendas físicas já não existe, porque o streaming não paga nada, porque os meios de comunicação seguem concentrados no centro do país e os shows são cada vez mais difíceis de divulgar em redes sociais tomadas por algoritmos que exigem impulsionamento pago e determinam o que podemos ver e ouvir em nossas próprias redes. O Jabá está agora por todo o canto, capilarizado nas redes e em ofertas de métodos milagrosos por influencers que sabem como fazer você “viver de música se souber jogar o jogo dos algoritmos”.

Eis a questão. Artistas como Ian Ramil – e daria para incluir uma lista enorme e qualificada de gente de todas as gerações – não vivem de música, mas vivem para a música. (Embora vivam de música, claro). Fazem música e encaram as adversidades porque esse é o seu modo de existir, resistir e enfrentar. Respirar. E aqui é onde um artista, como sabemos, é uma constelação de gente muito boa: parem para escutar a produção do disco, a ficha técnica que serviços de streaming como o Spotify sequer nos permitem acessar. Isto porque o violão e voz de Ian, cantautor que teve de adiar o lançamento deste trabalho em função da pandemia, encontra-se também coletivamente com os diversos artistas que fizeram Tetein e que estarão com ele no lançamento do Theatro São Pedro, dia 03 de Agosto e esperamos que em novas datas.

Não vou comentar faixa a faixa, pois realmente daria um livro ou uma edição inteira da Parêntese. Quero apenas refletir com a leitora e com o leitor sobre a produção de um disco em estúdio. O tratamento, as sonoridades, a fusão entre arranjo e mixagem. Assim como as referências escondidas. Não consigo ouvir “Bichinho” sem associar com “Duerme Negrito”, de Ataualpa Yupanqui. A escolha de timbres e efeitos e levadas. Mais uma vez, retorno a Mil Pares, canção que ouvi mais vezes, pois foi o primeiro single que me impactou enormemente: ali temos de tudo: tecno-ciranda, funk, afro-malambo e candombe. Sobretudo a voz: as vocalidades de Ian presentes com uma versatilidade e intensidade que pouco vemos na música brasileira hoje. 


Leandro Maia é cantor, compositor, pesquisador, regente coral e professor universitário. É PhD em Música pela Bath Spa University/Reino Unido, com Bolsa da CAPES no Exterior, Mestre em Letras e Licenciado em Música pela UFRGS. Especialista em Letras/Criação Textual pela Uniritter. É Professor Adjunto do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas, juntos aos Cursos de Bacharelado em Música e na Especialização em Artes.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.