Resenha

Trilegal: o gaúcho é gay, sapa, trans…

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Trilegal: o gaúcho é gay, sapa, trans… Capa Estúdio Mar Edições/Divulgação

Não há exagero algum em afirmar que as histórias do segmento LGBTQIAPN+ ainda estão por ser escritas. Pelo contrário, o próprio momento em que vivemos comprova que algumas dessas histórias começaram a ser delineadas em um passado muito recente e não propriamente por historiadoras ou historiadores. Nesse sentido, não precisamos voltar muito tempo atrás: foi na década de 1980 que surgiram de fato as publicações das primeiras pesquisas que tentam registrar uma parte dessa história. Os estudos das práticas sodomíticas no período colonial brasileiro começaram a ganhar lume pelas mãos do antropólogo Luiz Mott, e o ano de 1985 marcou o surgimento do monumental Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, do escritor, tradutor e jornalista João Silvério Trevisan. Devassos ficou como referência para diversas gerações, pois ocupou um imenso vazio e uma dimensão fundamental na formação de um público leitor dissidente de sexo e de gênero interessado em sua própria história.

Foi necessário aguardar até o ano 2000 para que a tradução de Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, do historiador brasilianista James Norton Green, fosse publicada em terras brasileiras. O próprio Green já reconheceu o equívoco do subtítulo de sua obra, pois ela se restringe ao estudo daquele recorte identitário no Rio de Janeiro. Em 2007, foi publicado @s outr@s cariocas: interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro – séculos XVII ao XX, de Carlos Figari. Em 2014, James Green e Renan Quinalha organizaram Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. Muito recentemente, em 2023, saiu o livro organizado por Paulo Souto Maior e Renan Quinalha, Novas fronteiras das histórias LGBTI+ no Brasil.

Basta esse rápido esboço para verificarmos, de um lado, que a reconstituição dessa história se concentrou inicialmente na região Sudeste (e muito recentemente se direcionou, ainda com lacunas, às outras regiões do país), e, por outro lado, que as falhas começaram a ser preenchidas por meio de pesquisas acadêmicas efetuadas nos diversos programas de pós-graduação espalhados pelo país (representadas por diversas dissertações e teses) ou na constituição de grupos e/ou coletivos interessados na recuperação dessa história fora do eixo sudestino. É o que ocorre com, entre outros: História do movimento LGBT no Brasil, organizado por James Green, Renan Quinalha, Márcio Caetano e Marisa Fernandes (2018); Tem saída?: perspectivas LGBTI+ sobre o Brasil, organizado por Taynah Ignacio mais cinco coautores/as (2020); Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA+, organizado por Rita Colaço, Elias Veras e Benito Schmidt (2021); Movimento LGBTI+: uma breve história do século XIX aos nossos dias, de Renan Quinalha (2022).

No entanto, uma maior capilarização dessa história é necessária para que possamos entender diversas especificidades, singularidades, sobreposições, simultaneidades, aproximações e releituras essenciais sobre a história do nosso segmento. Apenas o aprofundamento da regionalização desses estudos dará conta de alcançar esse objetivo. E parece que o Rio Grande do Sul já deu a partida nesse evento. Foi daí que surgiu, em 2022, Histórias lesbitransviadas do Rio Grande do Sul, organizado pelos historiadores Benito Schmidt e Rodrigo Weimer. E é das terras gaúchas que saiu neste ano O gaúcho era gay? Mas bah! (1737-1939), do também historiador Jandiro Adriano Koch.

Capa Psychoses do Amor, de Hernani de Irajá

Autor de outros dois ensaios significativos nessa vertente historiográfica voltada à população LGBTQIAPN+ – Babá: esse depravado negro que amou (2019), no qual resgata os vestígios da existência de um escravizado homossexual no fim do século 19 no Rio de Janeiro, e O crush de Álvares de Azevedo (2020), no qual analisa as possibilidades de existência de uma “tensão afetivo-sexual” entre o poeta romântico e o porto-alegrense Luiz Antônio da Silva Nunes –, Jandiro Koch mergulha em documentos de naturezas diversas, em arquivos, museus, sebos, bibliotecas e hemerotecas, para garimpar e trazer à luz produções discursivas de médicos, sexólogos, escritores, teatrólogos, artistas, historiadores, policiais, jornalistas, advogados e juízes acerca das pessoas dissidentes de sexo e de gênero que circularam em carne e osso pelo Rio Grande do Sul ou pelas páginas da imprensa e das produções ensaísticas. O recorte temporal sobre o qual Koch se debruça é largo – são 202 anos de recuperação da memória daqueles/as dissidentes, sendo que, pelo fato de uma maior medicalização e moralização dos discursos e das formas de representação de grupos sociais ocorrer mais intensamente a partir de meados do século 19, o material tende a ser em maior quantidade e mais variado nos últimos 50 anos do período recortado.

De todo modo, é um esforço recompensado por diversos êxitos, como trazer fatos, dados e indícios mais claros e robustos da presença de dissidentes de sexo e de gênero no ambiente social da capital e do interior gaúcho; servir como mapeamento e referência metodológica para pesquisas de outros estados brasileiros; demonstrar a existência de uma visibilidade e sociabilidade LGBTQIAPN+ naquele estado; transcrever literalmente as fontes, aproximando o/a leitor/a do discurso que circulou àquela época; explicitar ao/à leitor/a os entraves encontrados para localizar fontes e abordá-las de modo criterioso.

Por meio de um levantamento sistemático e de uma análise rigorosa, temos conhecimento das diversas categorias de dissidentes de sexo e de gênero que atravessaram o Rio Grande do Sul: sodomitas, petits-maîtres, almofadinhas, adamados, dândis, ganimedes, maricas, pirobos, putos, tubarões, veados, imitadores do belo sexo, tríbades, travestis, mulheres-homens, homens-mulheres. E conhecemos também como os processos de marginalização desse grupo vão acontecendo, como os entrecruzamentos discursivos contrários àquelas categorias vão se convergindo, como as representações também vão sendo construídas. Ao deixar essas relações um pouco mais transparentes, Jandiro Koch reinscreve o lugar, a agência e as formas de sociabilidade daqueles dissidentes de sexo e gênero nos pequenos, médios e grandes centros urbanos gaúchos.

Transformista Mirco

Todo esse cuidado de Jandiro Koch com a recuperação da história da população de dissidentes de sexo e de gênero no Rio Grande do Sul revela também um esforço de reparação histórica sobre esse grupo. Reunir tais documentos, reler tais fontes, reinterpretar seus conteúdos sob um novo foco, reposicionar esses “marginais” requer uma sensibilidade e uma consciência para efetuar de fato uma revisão histórica e alcançar aquele efeito de reparação mencionado.

Contudo, Jandiro Koch tem consciência de que o trabalho não se encerrou. Por isso, inicia a última seção de seu texto assim: “Chegou o fim – temporário.” E explicita pelo menos dois pontos que considero as duas grandezas de seu trabalho: forneceu os fundamentos “para as reflexões sobre quem, como e onde, no RS, foram, agiram e estiveram os LGBTQIA+”, assim como revelou “um tanto da produção do imaginário e de como ele reverberava à época e do que ainda se escuta nos ecos”.

De fato, as ressonâncias de seu trabalho se farão sentir pelos/as pesquisadores/as, nas interlocuções e nas interseções que ainda poderão ser feitas com outras regiões, nas similaridades e disparidades com outros locais onde uma subcultura de dissidentes de sexo e gênero se constituiu no território brasileiro.


Luiz Morando é doutor em Literatura comparada pela UFMG. Pesquisador independente sobre memória das identidades LGBTQIA+ de Belo Horizonte. Autor de Paraíso das Maravilhas: uma história sobre o Crime do Parque (2008) e Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (2020).

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